Vellum
Essa resenha é para aqueles que insistem na conversa fiada de que toda a literatura cabe num modelo, como o modelo do herói, o Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell. “Toda historia épica deveria começar com um mapa em chamas”. Existem frases que representam todo um programa de intenções e o inicio de “Vellum” de Hal Duncan, é uma delas.
Duncan escreve uma obra mais que épica, pois ultrapassa os confins do espaço e do tempo, até o ponto que os mapas se tornam meramente redundantes: o mapa é o livro, mas a vontade do cartografo provocou a combustão do documento, que termina obrigando o leitor a formar a imagem, uma colagem mental antes que as chamas consumam o texto. Claro que orientar-se com um mapa ardendo em chamas pode causar sérios problemas se você quiser chegar a algum lugar.
Aí reside a polêmica: enquanto os maiores escritores do fantástico literário atual (Shepard, Jeffrey Ford, VanderMeer) saudaram “Vellum” como um acontecimento dos que fazem época, muitos leitores tradicionais do gênero passaram a recorrer a estranhas teorias conspiratórias para explicar as entusiastas resenhas dispensadas ao livro.
Vellum trata-se de um grupo de anjos partidários da ordem ditatorial combate outro grupo renegado, de óbvias ressonâncias diabólicas, ao longo do tempo e do espaço, sem permitir que nenhum ser de natureza sobrenatural se coloque a margem da contenda. O universo múltiplo, meta universo, o “Vellum” do título, supõe um desafio conceitual imutável, assim como das nano máquinas capazes de manipular a realidade em nível molecular, ou das versões alternativas, ucrônicas, de nosso mundo já conhecido.
O que converte o livro em um desafio é sua densidade textual, sua fragmentação, seu enfoque caleidoscópico que pretende dar uma ideia de seu cosmo onde as noções tradicionais do tempo e espaço não são aplicáveis. Os personagens são apresentados em meio a mitos imemoriáveis, sumérios ou gregos, que refletem na trama entre cortes e saltos no tempo; subtramas independentes, cujos protagonistas parecem ser os mesmos que conhecemos; que insinuam que estamos em um universo alternativo. Duncan faz tudo isso por meio de mitologia comparada, uma estrutura atomizada que modifica o arco narrativo tradicional, que enlaça e entrelaça vários relatos breves e contos curtos.
Assim conhecemos os primeiros anos de Seamus Finnan, antes e depois da Primeira Guerra Mundial; a expedição ao coração da Ásia em busca de Kur, a lendária cidade dos mortos, onde se fala uma linguagem pré-histórica, transcrita foneticamente em peles humanas, capaz de desencadear um devastador poder; as andanças de Jack Flash, anárquico herói futurista ao estilo Jerry Cornelius que é interrogado e analisado por seus captores; ou a iniciação angelical de Phreedom Messenger, onde as percepções estão sobrepostas, a realidade virtual, a religião lendária, o violento e sórdido mundo físico coexistem equivalentes.
Para muitos o livro parece indigesto, pois os cortes, saltos e passagens no tempo e espaço são inúmeros. Entretanto, a narração de Duncan é magnifica, um efeito que encontrei apenas em “Os Cantos de Maldoror” de Conde de Lautréamont. Tenho na estante “Vellum” e “Ink” – a conclusão do ciclo iniciado no primeiro volume -, que são obras primas que demonstraram o que se podia fazer com o arsenal literário da fantasia, ficção científica e do horror, uma releitura e reflexão dentro dos subgêneros aos quais estamos acostumados.
Poeta Mórbido