As seis cordas

A guitarra
faz soluçar os sonhos.
O soluço das almas
perdidas
foge por sua boca
redonda.
E, assim como a tarântula,
tece uma grande estrela
para caçar suspiros
que boiam no seu negro
abismo de madeira.

(Federico Garcia Lorca)



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Categoria: Poesia |
| Postado em: 22.12.17

Novembro

Realmente,
não vejo por que ignorar…
Que vivemos uma ditadura branca.

É preciso destruir os símbolos
e sepultar a sociedade moderna
nos destroços de suas ilusões.

Caminharemos sobre os escombros
do sonho americano…

Terminara finalmente nosso apocalipse
politicamente administrável,
nossa forma débil de existir,
nossa pobreza rentável.

Não mais os totens e tabus…

Dançaremos a bela música da loucura razoável
e plena sobre o fulgor do indizível.

Movidos pela incerteza,
enquanto navegamos desplugados em corpos de quimera!

Celebraremos, hoje, a vida em seu eterno resistir,
Plugaremos nossas mentes e corpo na infoera…
Abraçando os acontecimentos devir.

Abaixo a abstração sobre o corpo.
Abaixo os paraísos ideais,
no além-mundo.

Viva o corpo e a superfície!
Viva o homem enforcado!

(Poeta Mórbido)



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Categoria: Poesia |
| Postado em: 18.12.17

Ink: The Book Of All Hours

autoria:

A leitura de “Ink” – Hal Duncan -, continuação do complexo e controvertido “Vellum” que sempre revisito para obter uma nova leitura. A continuação segue a mesma lógica e coerência iniciada pelo antecessor, mesmo porque a percepção se adapta ao caleidoscópico textual e assim pode-se ver claramente a relação de cada capítulo, de cada parte com outras, a forma que os personagens dos distintos universos se constroem, os diferentes planos de narração e as diferentes linhas temporais. Sem sombra de dúvida, “Ink” (ou “Tinta” na versão espanhola), é a culminação da maior obra fantástica da primeira década do século XXI.

Duncan é um escritor de grande talento, com passagens em que o ritornelo é aplicado ao conceito de múltiplos universos e com grande habilidade para a documentação. A riqueza textual do livro anterior, o mapa em chamas, foi substituída por uma maior concentração nos personagens, no conflito entre as facções dos anjos, na busca do livro que contem as bases do multiverso, nas nano-máquinas que adquirem inteligência artificial; é a esse conflito que Duncan dedica o segundo volume, apresentando simultaneamente distintas realidades e múltiplas versões dos mesmos personagens.

Talvez o único ponto que torna Duncan um tanto cansativo é sua incurável capacidade de escrever incessantemente sobre o mesmo tema, às vezes apenas para comunicar a mesma mensagem, por exemplo, a montagem em paralelo entre as andanças de Jack, o agente do caos influenciado por Cornelius e a representação da obra “As bacantes” de Eurípides.

Duncan rompe com a saga do herói fazendo uma mitologia comparada em sua excelente ambientação histórica para sugerir realidades alternativas. Essa renuncia da progressão narrativa tradicional torna-se o ponto forte e também o seu problema, sendo um livro para poucos. Alguns dirão que “Ink” é mais compreensível e mais focada, corrigindo a dispersão de “Vellum”; outros creem que, na segunda parte de sua obra, Duncan tornou o livro apenas mais comercial. De meu ponto de vista, já tendo lido e relido tantas vezes, “Vellum e Ink” são obras primas, mas o excesso de prodigalidade atordoa e deixam muitas pessoas indiferentes diante de tanto ruído e fúria.

Poeta Mórbido



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Categoria: Resenha |
Tags:
| Postado em: 17.12.17

Dançando

autoria:

Eu sei que lá no fundo
Há tanta beleza no mundo
Eu só queria enxergar

As tardes de domingo
O dia me sorrindo
Eu só queria enxergar

Qualquer coisa pra domar
O peito em fogo
Algo pra justificar
Uma vida morna

O mundo acaba hoje e eu estarei dançando
O mundo acaba hoje e eu estarei dançando
O mundo acaba hoje e eu estarei dançando com você

Não esqueço aquela esquina
A graça da menina
Eu só queria enxergar

Por isso eu me entrego
À um imediatismo cego
Pronta pro mundo acabar

Você acredita no depois?
Prefiro o agora
Se no fim formos só nós dois
Que seja lá fora

O mundo acaba hoje e eu estarei dançando
O mundo acaba hoje e eu estarei dançando
O mundo acaba hoje e eu estarei dançando com você.

(Agridoce)

Versão cover de Isis Vasconcellos



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Categoria: Poesia |
Tags:
| Postado em: 17.12.17

Cântigo Negro

autoria:

‘’Vem por aqui’’- dizem-me alguns com olhos doces
Estendo-me os braços e seguros.
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: ’’Vem por aqui’’!
Eu olho-os com olhos lassos
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasquei o ventre a minha Mãe.

Não não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: ‘’Vem por aqui’’?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos
Redemoinhar aos ventos
Como farrapos arrastar os pés sangrentos
A ir por aí…

Se vim ao mundo foi
Só pra desflorar floresta virgens
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como pois serei vós
Que me dareis impulsos ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o longe e a Miragem
Amo os abismos as torrentes os desertos…

Ide! Tendes estradas
Tendes jardins tendes canteiros
Tendes pátrias tendes tetos
E tendes regras e tratados e filósofos e sábios.
Eu tenho minha loucura!
Levanto-a como um facho a arder na noite escura
E sinto espuma e sangue e cântico nos lábios…

Deus e o Diabo e que me guiam mais ninguém.
Todos tiveram pai todos tiveram mãe;
Mas eu que nunca principio nem acabo
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: ‘’Vem por aqui’’!!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se levantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou
Não sei para onde vou

– Sei que não vou por aí!

(José Régio)



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Categoria: Poesia |
| Postado em: 17.12.17

Bem menos

Lembro,

feito volúpia e tremor:

não precisarás

esquecer-me

no caminho

quando eu

já for

menos que memória.

(Poeta Bastardo)



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Categoria: Poesia |
| Postado em: 16.12.17

Ademir da Guia

Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,
da água doente de alagados,
entorpecendo, e então atando
o mais irriquieto adversário.

(João Cabral de Melo Neto)

 



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Categoria: Poesia |
| Postado em: 16.12.17

Vellum

autoria:

Essa resenha é para aqueles que insistem na conversa fiada de que toda a literatura cabe num modelo, como o modelo do herói, o Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell. “Toda historia épica deveria começar com um mapa em chamas”. Existem frases que representam todo um programa de intenções e o inicio de “Vellum” de Hal Duncan, é uma delas.

Duncan escreve uma obra mais que épica, pois ultrapassa os confins do espaço e do tempo, até o ponto que os mapas se tornam meramente redundantes: o mapa é o livro, mas a vontade do cartografo provocou a combustão do documento, que termina obrigando o leitor a formar a imagem, uma colagem mental antes que as chamas consumam o texto. Claro que orientar-se com um mapa ardendo em chamas pode causar sérios problemas se você quiser chegar a algum lugar.

Aí reside a polêmica: enquanto os maiores escritores do fantástico literário atual (Shepard, Jeffrey Ford, VanderMeer) saudaram “Vellum” como um acontecimento dos que fazem época, muitos leitores tradicionais do gênero passaram a recorrer a estranhas teorias conspiratórias para explicar as entusiastas resenhas dispensadas ao livro.

Vellum trata-se de um grupo de anjos partidários da ordem ditatorial combate outro grupo renegado, de óbvias ressonâncias diabólicas, ao longo do tempo e do espaço, sem permitir que nenhum ser de natureza sobrenatural se coloque a margem da contenda. O universo múltiplo, meta universo, o “Vellum” do título, supõe um desafio conceitual imutável, assim como das nano máquinas capazes de manipular a realidade em nível molecular, ou das versões alternativas, ucrônicas, de nosso mundo já conhecido.

O que converte o livro em um desafio é sua densidade textual, sua fragmentação, seu enfoque caleidoscópico que pretende dar uma ideia de seu cosmo onde as noções tradicionais do tempo e espaço não são aplicáveis. Os personagens são apresentados em meio a mitos imemoriáveis, sumérios ou gregos, que refletem na trama entre cortes e saltos no tempo; subtramas independentes, cujos protagonistas parecem ser os mesmos que conhecemos; que insinuam que estamos em um universo alternativo. Duncan faz tudo isso por meio de mitologia comparada, uma estrutura atomizada que modifica o arco narrativo tradicional, que enlaça e entrelaça vários relatos breves e contos curtos.

Assim conhecemos os primeiros anos de Seamus Finnan, antes e depois da Primeira Guerra Mundial; a expedição ao coração da Ásia em busca de Kur, a lendária cidade dos mortos, onde se fala uma linguagem pré-histórica, transcrita foneticamente em peles humanas, capaz de desencadear um devastador poder; as andanças de Jack Flash, anárquico herói futurista ao estilo Jerry Cornelius que é interrogado e analisado por seus captores; ou a iniciação angelical de Phreedom Messenger, onde as percepções estão sobrepostas, a realidade virtual, a religião lendária, o violento e sórdido mundo físico coexistem equivalentes.

Para muitos o livro parece indigesto, pois os cortes, saltos e passagens no tempo e espaço são inúmeros. Entretanto, a narração de Duncan é magnifica, um efeito que encontrei apenas em “Os Cantos de Maldoror” de Conde de Lautréamont. Tenho na estante “Vellum” e “Ink” – a conclusão do ciclo iniciado no primeiro volume -, que são obras primas que demonstraram o que se podia fazer com o arsenal literário da fantasia, ficção científica e do horror, uma releitura e reflexão dentro dos subgêneros aos quais estamos acostumados.

Poeta Mórbido



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Categoria: Resenha |
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| Postado em: 16.12.17

Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

(Augusto dos Anjos)



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Categoria: Poesia |
| Postado em: 16.12.17

Un Lun Dun

A culpa de tudo é de Tolkien. Em toda aventura de “fantasia” se pensa num grupo de heróis ajudando a restaurar a feliz ordem de características feudais. Alguns dizem que o subgênero de fantasia medieval é apenas uma variação dos livros de cavalaria, uma parodia de Cervantes. Mas às vezes surgem pessoas como China Miéville, que escrevem algo fantástico, como o “Un Lun Dun”. Um livro cuja organização política do mundo sugere que a autoridade pode e deve ser questionada.

Miéville não faz nada de diferente neste livro do que já fez antes de Bas-Lag, ou depois em “The city and the city”, entretanto, é sua maneira de fazê-lo, no marco da narração de ritmo rápido e linguagem simples, que o torna único.

A ideia é da existência de uma “Não Londres” formada por uma população variada e constituída do lixo de uma Londres “normal”; cuja presença do Smog seria um inócuo “ecologismo” e que existem interesses industriais por trás destas ações; a intolerância frente à mestiçagem é demonstrada em Hemi, criança nascida da união entre um humano e um fantasma, capaz de desenvolver-se em ambos os mundos; existe também um tirano que impõe as palavras o significado que deseja, até que estas se rebelam dando um ar divertido ao estilo Lewis Carroll, ainda que falte um pouco de Orwell.

O livro é um grande jogo, construindo imagens difíceis de traduzir – como, por exemplo, a analogia entre janelas e aranhas (black window-black widow)? Que da origem a um dos capítulos mais memoráveis do livro -, além de dinamitar a tradição de maneira maliciosa, já que Miéville faz com que o livro se equivoque. Há tantas ideias sugestivas, monstros, perseguidores e espíritos rebeldes como em qualquer outra novela de China Miéville. Não é um livro ácido, nem controvertido, sua subversão é leve, rompendo pequenos tabus das ficções infantis.

(Poeta Mórbido)

 



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Categoria: Resenha |
| Postado em: 18.05.16