Quarto do Suicida

Vocês devem achar, sem dúvida, que o quarto esteve vazio.
Mas lá havia três cadeiras de encosto firmes.
Uma boa lâmpada para afastar a escuridão.
Uma mesa, sobre a mesa uma carteira, jornais.
Buda sereno, Jesus doloroso,
sete elefantes para boa sorte, e na gaveta — um caderno.
Vocês acham que nele não estavam nossos endereços?

Acham que faltavam livros, quadros ou discos?
Mas da parede sorria Saskia com sua flor cordial,
Alegria, a faísca dos deuses,
a corneta consolatória nas mãos negras.
Na estante, Ulisses repousando
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os moralistas,
seus nomes em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Os políticos ao lado, muito retos.

E não era sem saída este quarto,
ao menos pela porta,
nem sem vista, ao menos pela janela.
Binóculos de longo alcance no parapeito.
Uma mosca zumbindo — ou seja, ainda viva.

Acham então que talvez uma carta explicava algo.
Mas se eu disser que não havia carta nenhuma —
éramos tantos, os amigos, e todos coubemos
dentro de um envelope vazio encostado num copo.

(Wislawa Szymborska)



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Categoria: Poesia |
| Postado em: 2.03.12

A Alegria da Escrita

Aonde é que, pela floresta escrita,
esta corça escrita corre?
Rumo à água escrita de uma fonte
cuja superfície há de xerografar seu focinho macio?

Por que ergue a cabeça?
Terá ouvido algo?

Apoiada em quatro delgadas
patas emprestadas à realidade,
ela escuta atenta sob as pontas de meus dedos.

Silêncio esta palavra também
cruza sussurrando a página,
e aparta os ramos
nascidos da palavra “floresta”.

Prontas para o bote, há letras
mal-intencionadas de tocaia,
garras de orações tão subordinadas
que jamais hão de deixar escapar.

Há em cada gota de tinta uma provisão
de caçadores de olhos semi-cerrados por detrás das miras
que estão dispostos a descer a encosta da caneta,
encurralar a corça e apontar-lhe as armas devagar.

Esquecem que o que está
aqui não é a vida.

Aqui, preto no branco, são outras as leis.
Um piscar de olho há de durar quanto eu quiser,
subdividindo-se, se eu assim o desejar, em mínimas eternidades,
cheias de balas sustidas em pleno voo.

Nada que eu não mande há de acontecer.
Sem minha permissão, nenhuma folha há de cair.

Então existe um mundo assim,
sobre o qual exerço um destino independente,
um tempo que enlaço com corrente de signos,
uma existência perene ao meu comando.

A alegria da escrita,
o poder de preservar,
a vingança da mão mortal.

(Wislawa Szymborska)



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Categoria: Poesia |
| Postado em: 3.02.12

PI

O admirável número pi:
três vírgula um quatro um.
Todos os dígitos seguintes são apenas o começo,
cinco nove dois porque ele nunca termina.
Não se pode capturá-lo seis cinco três cinco com um olhar,
oito nove com o cálculo,
sete nove ou com a imaginação,
nem mesmo três dois três oito comparando-o de brincadeira
quatro seis com qualquer outra coisa
dois seis quatro três deste mundo.
A cobra mais comprida do planeta se estende por alguns metros e acaba.
Também são assim, embora mais longas, as serpentes das fábulas.
O cortejo de algarismos do número pi
alcança o final da página e não se detém.
Avança, percorre a mesa, o ar, marcha
sobre o muro, uma folha, um ninho de pássaro, nuvens, e chega ao céu,
até perder-se na insondável imensidão.
A cauda do cometa é minúscula como a de um rato!
Como é frágil um raio de estrela, que se curva em qualquer espaço!
E aqui dois três quinze trezentos dezenove
meu número de telefone o número de tua camisa
o ano mil novecentos e setenta e três sexto andar
o número de habitantes sessenta e cinco centavos
a medida da cintura dois dedos uma charada um código,
no qual voa e canta descuidado um sabiá!
Por favor, mantenham-se calmos, senhoras e senhores,
céus e terra passarão
mas não o número pi, nunca, jamais.
Ele continua com seu extraordinário cinco,
seu refinado oito,
seu nunca derradeiro sete,
empurrando, arf, sempre empurrando a preguiçosa
eternidade.

(Wislawa Szymborska)



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Categoria: Poesia |
| Postado em: 2.02.12