Ghouls não choram
Desde a minha infância exibi potencial para desbravar as terras ermas. O fato de continuamente me esconder, de me mover velozmente e não fazer barulho são características que me acompanham desde que eu me entendo por gente. Quer dizer, eu e minha vila. Não foi nenhum espanto, portanto, quando me designaram como batedor. Há anos exerço essa função, e há anos corro o risco de morrer ao vasculhar o que restou das terras de meus antepassados por comida, ferramentas, armas e qualquer coisa que possa ser útil para a sobrevivência do meu povo.
Contudo, nem só de sobras vive o homem. Parte essencial da nossa motivação, conhecimento e entretenimento vem dos livros que arrumamos em nossas viagens. É inegável o fato de que aprendemos muito com essas compilações de papel marrom e tinta quase apagada. As histórias de como nossos antecedentes viviam em um mundo completamente diferente – sem água radioativa e garras-da-morte – sempre me intrigou. Não eram apenas momentos de escapismo, mas também de esperança, por serem obras que nos informavam de um mundo que os avós dos nossos pais conheceram, onde plantas eram capazes de crescer em variadas cores e a poeira não se infiltrava por qualquer fresta.
No entanto, ao passo que, em mim, os livros causavam a vontade de não arriscar minha vida passeando fora da vila, nos jovens os elaborados e fantásticos contos os deixavam apenas mais afoitos para se aventurar. Nossa biblioteca era reduzida, e as mesmas histórias, lidas repetidas vezes, continuamente inflamavam os espíritos de nossos filhos. Por isso, quando ouvi falar da existência de um suposto “livreiro” na região, não hesitei em procurá-lo. Era a peça chave para expandir o repertório de nossos leitores.
O livreiro sabia se esconder, mas nada que algumas chapinhas de Nuka-Cola não resolvessem com os mercadores de Canterbury Commons. Em pouco tempo, eu já estava explorando os fétidos esgotos próximos à entrada sul de Washington. Poucos ghouls ferais me notaram, e, mesmo assim, apenas quando meu shishkebab já estava encostado em suas nucas. Alguns dutos adiante, achei o local. Era um verdadeiro oásis literário, com várias pilhas de livros que impregnavam o espaço com o cheiro de mofo. Sentado ao lado de uma vitrola, segurando um pequeno bobblehead da Vault-Tec em suas mãos, estava o dono de tudo isso.
Boris era um ghoul. O cheiro de sua carne necrosada era impregnante, mas ele era refinado em suas atitudes. Recepcionou-me com um solene sorriso, enquanto ajeitava a agulha da vitrola, e perguntou o que eu procurava. Apesar da exibição de livros sobre Nikola Tesla e um Guia de Sobrevivência por Moira Brown, optei pelo caminho inverso. Solicitei histórias que desmotivassem pessoas a explorarem as terras ermas.
Boris exemplificou com diferentes episódios. Que tal uma família separada? Mulher e filha afastadas do pai pela Irmandade de Aço em nome da segurança e isolamento da radiação. Ou um exílio forçado? Um homem é expulso de sua cidade por gradualmente se tornar um ghoul. E uma tormenta pessoal? Pai consegue reencontrar mulher, mas a mesma é espancada e levada embora, puxada pela perna, por super mutantes. De repente você prefere uma devastação emocional? Pai reencontra filha e pede ajuda, mas a mesma o xinga de zumbi e organiza sua própria escolta para resgatar a mãe. Durante a missão, raiders aparecem, e no fogo cruzado entre eles, os super mutantes, e a escolta, todos morrem.
Quando afirmei que queria o livro que possuía estes relatos, Boris não esboçou lágrimas. Seu tom melancólico, acompanhado da faixa “I don’t want to set the world on fire”, foi claro quando ele disse: Eu também gostaria que fossem apenas livros.
Voltei, naquele dia, sem chapinhas, mas carregado de compilações. Mesmo assim, os jovens continuaram ansiosos para explorar as desconhecidas terras áridas. Foi então que entendi que apenas uma história iria ensiná-los a valorizar a vida: as suas próprias.
(Arthur Protasio)
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