Walter: Sem Sorriso
Arrancaram o banco do ponto de ônibus. O chão banhado de sol. Pessoas. Muitas pessoas. Nos carros do ano e a pé também. Cabecinhas na calçada pareciam ter sido postas como bonequinhos. Parados. Esperavam a morte e o ônibus. Uma segunda-feira que culminava o sentimento de preguiça e má vontade. O bom e entediante trabalho de cada dia. Tão humanista quanto à escravidão. O nome trabalho vem do grego tripalium, nome dado a um instrumento medieval de tortura. Walter sabia disso. Lera muito quando mais jovem. Agora fazia palavras cruzadas e lia o Jornal do Povo.
Às vezes se arriscava em Hemingway, Paul Celan e poesia nacional. Fazer cruzadas não representava velha idade. Walter não era idoso. Estava no auge opaco de seus quarenta e um anos. Servidor público. Trabalhava no Ministério Público do Estado há longos e não divertidos quatorze anos. E hoje iria atrasar-se. As ondas de UVA e UVI não só fritavam o asfalto, mas também chupavam um pouco de sua cabeça e de outros que esperavam no ponto de ônibus. Em pé. Sim. Aquelas cabeças que pareciam bonequinhos de um deus criança.
Era um homem magro. Cabelos castanhos com um princípio de calvície e pontinhos brancos. Vestia um terno cinza velho. Óculos tão magros quanto ele. Sapatos de couro falsificado negros como seus olhos. Uma pasta também de couro, mas original. Orgulhava-se de sua pasta nova onde colocava suas palavras cruzadas, um bloquinho de anotações, uma caneta preta, comprimidos pra dor de cabeça, a receita de um remédio para stress que o doutor Washington Luís receitou, mas não comprara; e um livro de bolso com poemas escolhidos de Carlos Marighella. Ele apreciava. Fazia-o relaxar.
Era um homem culto que não sentia necessidade de expor isso a ninguém. Não era um pensador. Mas odiava os intelectuais de esquerda que defendiam a legalização da maconha e usavam pingentes do Che. Um homem reservado. Silencioso. Observador e introvertido. Desejando a morte do motorista do ônibus que não chegava.
Corpos semi vivos amontoados numa esquina qualquer olhando periodicamente o horário em seus celulares de ultima geração. Servidores, vendedores, cozinheiros, mas todo mundo hoje tem um celular de ultima geração. O pobre, pensava Walter, também tem direito de poder tirar fotos com os filhos na escada rolante, acessar a facebook e ter o privilegio de verificar o horário do trabalho numa tela de touchscreen.
Mas Walter usava seu bom e velho Arthur das Eras. Esse era o nome do seu relógio. Estranho? Não. Walter já lera sobre um velho que mantinha relações sexuais diariamente com um corpo congelado de um menino que havia assassinado. Então, ele poderia dar um nome ao seu querido relógio de bolso que levava consigo sempre que saía para trabalhar ou ler no parque da cidade sem ser taxado de excêntrico.
Treze e quarenta e três da tarde e o bom e velho caminhão de carga humana conformista ainda não dera nenhum sinal de vida burra. Faltavam dezessete minutos. Iria se atrasar. E o Sol. Sentia-se numa fornalha de Lúcifer. Os pés imploravam arrego. E mais: Calor humano. Não suportava. Um considerável número de pessoas de todas as cores, tamanhos, crenças e desejos diferentes unidas em seis metros quadrados era um ambiente não muito apreciável na concepção cinzenta de Walter.
Acendeu um cigarro. A senhora que parecia supervisora de algum colégio de ensino médio, que provavelmente não ensinava história da arte, pensou Walter, protegia sua cabeça do deus Hélios com um exemplar de Ponto da Moda, revista com artigos de temas que enchiam o estômago de Walter de vermes. Um rapaz com uma camisa de pré-vestibular, escrito “Rumo à Medicina” em suas costas, mascava chiclete e conversava com uma moça bonita ao seu lado, igualmente estúpida, sobre suas manobras de skate no centro de esportes da cidade e de como seus colegas de classe eram riquinhos e “show de bola”. Walter era um observador. E os vermes pareciam querer eclodir de seu intestino delgado como a massa de uma torta de macarrão transbordando da forma.
Nosso herói de cinquenta e cinco quilos e duzentos e trinta gramas analisava cada centímetro de humanidade e de simplicidade que observava no dia a dia. Combinava momentos de contemplação do vazio, apreciação das formas incertas e misteriosas das nuvens e ponderações despretensiosas a cerca do comportamento dos civis cujo era obrigado a conviver em seu cotidiano monocromático.
Colegas de trabalho. Transeuntes. Personagens das fábulas dos livros e das piadas políticas dos noticiários. Um reator de informação inata. Irritava-se com tanta coisa. Impelia-se à indiferença. Achava graça da ironia dos fatos e dos homens. Mas não sorria. Nunca. Era apenas um feixe de vida passando pela realidade feito o mais belo e invisível espectro de luz. Caminhava sobre a linha tênue, opaca e sem graça que é a existência.
Lá vinha ele da esquina suja da Rua Sete de Setembro. Seu som imponente e desconexo, como o rugido de um Kraken que acabara de ser libertado, conotando o cansaço e a ferrugem de suas engrenagens, feias como as do capital. O ônibus. Febril e lento. Parecia doente e tão cansado e acalorado como aqueles que o esperavam.
A reação de satisfação e a alegria vã tomaram forma de ondas sonoras, atravessaram os seis metros quadrados de carne humana e emergiram do quase silêncio na forma das mais nobres declarações pessoais: “porra, já tava na hora”, “olha a hora que o filha da puta passa”, “Ufa, ele chegou, em nome de Jeová!”; dentre outros poemas populares. Walter não pensou em mexer nem uma de suas cordas vocais ali equipadas com sua laringe. Sem palavra feia. Nenhuma molécula de endorfina a mais, nenhuma a menos. Talvez uma fina sensação de alívio escondida no canto direito de seu pulmão. Talvez. Subiu a carruagem. Sem sorriso.
Zé Ramalho parecia tão relevante enquanto ele notava o balançar do gado na carruagem. Amassavam-se em suor, banha e roupa nova. Ruminavam comentários vazios como capim, pensando em falar de reality shows, política regional e a situação precária de seus filhos na escola. Walter sentia-se numa lata de comida pra gato. E sabia que todos ali um dia seriam comidos. Por gatos maiores.
Limitava-se a lembrar dos relatórios que deixara pré-prontos na sala de trabalho pela manhã. Notas fiscais, placas patrimoniais, cadeiras e mesas de computador pra levar ao senhor Procurador de Justiça e ao chefe de Departamento de Informática. Eles não poderiam esperar mais. Suas bundas gritavam na expectativa de um assento mais seguro e confortável. Com sabor de produto novo e débito bancário. Tudo em favor da boa produção, do bom funcionamento do órgão e do bem da comunidade.
Walter procurava não se encostar muito no homem com a farda da distribuidora de açúcar do seu lado, com a camisa não tão bem apresentavelmente confiável e régia quanto prezava. Faltava pouco. Mais dez minutos fora os quarenta e cinco já esperados dentro da carruagem, e já estaria no abatedouro.
Saiu do ônibus como uma criança que irrompe úmida e vermelha da vagina de sua mãe. Nascer pra mais um dia e morrer no deitar do crepúsculo. E a alegria dos apresentadores de programas de palco não era tão azul quanto às janelas recém polidas do pomposo prédio do Ministério. Berço da justiça. Ou da sujeira. E ali dentro apreciou o frio das centrais de ar e a tela do computador onde registrou seu ponto já calculando seu prejuízo e escolhendo qual livro iria abrir mão de comprar esse mês. Capitães de Areia . Um novembro ingrato e maligno como o bebê de Rosemary.
Um pio discreto anunciou a porta do elevador se abrindo, feito a boca de uma baleia azul esperando o erro das camadas de crio. E lá se acomodaram em pé, Walter, a moça simpática da Xerox, o zelador, também não muito bem humorado, e seus esfregões, dentre outros seres aquáticos do oceano moderno.
A boca se fechou e irromperam no ar as notas de Imagine . “No máximo treze pessoas”, a placa indicava, ao lado de sua irmã, que afirmava uma relação direta de lógica entre o ato de expressar júbilo escancarando um sorriso e de uma medida de segurança interna que registra em vídeo o momento em que você coça o ouvido, retira bactérias do nariz, fala sozinho ou surrupia aquele Sonho da Valsa que estava de bobeira na prateleira. Walter não entendia esse tipo de coisa.
E depois de alguns “boa tarde”, “bom trabalho”, “oi, como vai?” e “legal essa música dos Beatles”, Walter sobreviveu corajoso àquele suco gástrico público e se direcionou à sala vinte e três; sem antes é claro tomar um copinho de café preto, como aquele que o fez, e ter desejado não existir a placa de “É proibido fumar”.
“Boa noite, senhor Walter. Estava roçando com alguma colegial pra chegar essa hora?” – Proferiu Gilvan, o secretário da seção de material. Sim. Ele era o piadista da sala. Walter percebeu que era uma piada, mas não sorriu. A vida não tinha graça.
“Não, senhor – Afirmou com segurança e tom de voz calculado.”
“Tô te zuando, cabra. Todo mundo tem direito de fornicar, num é? Mas cuidado com os Homem.” – Disse o piadista, sorrindo. Não. Definitivamente não tinha graça. Walter ignorou e caminhou até sua mesa. Tripalium. Ele sentiu o açoite. Começou a organizar os papéis e a jogar fora os papeizinhos com reclamações dos chefes de Departamento cujas bundas pálidas ainda reclamavam da má simetria das cadeiras. Tripalium. Suas costas doíam.
O restante da sala com estagiários magrelos, outros servidores e uma cadeira vazia do chefe continuaram a tarde debatendo de forma entusiasta a forma como os homens atravessam a crise de meia idade, as notícias sobre e pedofilia nos bairros pobres e nas igrejas e vez ou outra se lembravam de ressaltar a piada feita com Walter quando este chegou ao recinto. Não havia graça. Nem na sala. Nem em qualquer outro lugar que Walter pudesse pensar.
Continuou organizando a papelada que pousavam na sua mesa como a comida de um condenado, e digitando memorandos para departamentos que nem sabia que existia. Calado. Ainda sem sorrir. E pensando em qual nome ele daria à sua pasta nova.
(Poeta Bastardo)