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A leitura de “Ink” – Hal Duncan -, continuação do complexo e controvertido “Vellum” que sempre revisito para obter uma nova leitura. A continuação segue a mesma lógica e coerência iniciada pelo antecessor, mesmo porque a percepção se adapta ao caleidoscópico textual e assim pode-se ver claramente a relação de cada capítulo, de cada parte com outras, a forma que os personagens dos distintos universos se constroem, os diferentes planos de narração e as diferentes linhas temporais. Sem sombra de dúvida, “Ink” (ou “Tinta” na versão espanhola), é a culminação da maior obra fantástica da primeira década do século XXI.
Duncan é um escritor de grande talento, com passagens em que o ritornelo é aplicado ao conceito de múltiplos universos e com grande habilidade para a documentação. A riqueza textual do livro anterior, o mapa em chamas, foi substituída por uma maior concentração nos personagens, no conflito entre as facções dos anjos, na busca do livro que contem as bases do multiverso, nas nano-máquinas que adquirem inteligência artificial; é a esse conflito que Duncan dedica o segundo volume, apresentando simultaneamente distintas realidades e múltiplas versões dos mesmos personagens.
Talvez o único ponto que torna Duncan um tanto cansativo é sua incurável capacidade de escrever incessantemente sobre o mesmo tema, às vezes apenas para comunicar a mesma mensagem, por exemplo, a montagem em paralelo entre as andanças de Jack, o agente do caos influenciado por Cornelius e a representação da obra “As bacantes” de Eurípides.
Duncan rompe com a saga do herói fazendo uma mitologia comparada em sua excelente ambientação histórica para sugerir realidades alternativas. Essa renuncia da progressão narrativa tradicional torna-se o ponto forte e também o seu problema, sendo um livro para poucos. Alguns dirão que “Ink” é mais compreensível e mais focada, corrigindo a dispersão de “Vellum”; outros creem que, na segunda parte de sua obra, Duncan tornou o livro apenas mais comercial. De meu ponto de vista, já tendo lido e relido tantas vezes, “Vellum e Ink” são obras primas, mas o excesso de prodigalidade atordoa e deixam muitas pessoas indiferentes diante de tanto ruído e fúria.
Poeta Mórbido
Essa resenha é para aqueles que insistem na conversa fiada de que toda a literatura cabe num modelo, como o modelo do herói, o Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell. “Toda historia épica deveria começar com um mapa em chamas”. Existem frases que representam todo um programa de intenções e o inicio de “Vellum” de Hal Duncan, é uma delas.
Duncan escreve uma obra mais que épica, pois ultrapassa os confins do espaço e do tempo, até o ponto que os mapas se tornam meramente redundantes: o mapa é o livro, mas a vontade do cartografo provocou a combustão do documento, que termina obrigando o leitor a formar a imagem, uma colagem mental antes que as chamas consumam o texto. Claro que orientar-se com um mapa ardendo em chamas pode causar sérios problemas se você quiser chegar a algum lugar.
Aí reside a polêmica: enquanto os maiores escritores do fantástico literário atual (Shepard, Jeffrey Ford, VanderMeer) saudaram “Vellum” como um acontecimento dos que fazem época, muitos leitores tradicionais do gênero passaram a recorrer a estranhas teorias conspiratórias para explicar as entusiastas resenhas dispensadas ao livro.
Vellum trata-se de um grupo de anjos partidários da ordem ditatorial combate outro grupo renegado, de óbvias ressonâncias diabólicas, ao longo do tempo e do espaço, sem permitir que nenhum ser de natureza sobrenatural se coloque a margem da contenda. O universo múltiplo, meta universo, o “Vellum” do título, supõe um desafio conceitual imutável, assim como das nano máquinas capazes de manipular a realidade em nível molecular, ou das versões alternativas, ucrônicas, de nosso mundo já conhecido.
O que converte o livro em um desafio é sua densidade textual, sua fragmentação, seu enfoque caleidoscópico que pretende dar uma ideia de seu cosmo onde as noções tradicionais do tempo e espaço não são aplicáveis. Os personagens são apresentados em meio a mitos imemoriáveis, sumérios ou gregos, que refletem na trama entre cortes e saltos no tempo; subtramas independentes, cujos protagonistas parecem ser os mesmos que conhecemos; que insinuam que estamos em um universo alternativo. Duncan faz tudo isso por meio de mitologia comparada, uma estrutura atomizada que modifica o arco narrativo tradicional, que enlaça e entrelaça vários relatos breves e contos curtos.
Assim conhecemos os primeiros anos de Seamus Finnan, antes e depois da Primeira Guerra Mundial; a expedição ao coração da Ásia em busca de Kur, a lendária cidade dos mortos, onde se fala uma linguagem pré-histórica, transcrita foneticamente em peles humanas, capaz de desencadear um devastador poder; as andanças de Jack Flash, anárquico herói futurista ao estilo Jerry Cornelius que é interrogado e analisado por seus captores; ou a iniciação angelical de Phreedom Messenger, onde as percepções estão sobrepostas, a realidade virtual, a religião lendária, o violento e sórdido mundo físico coexistem equivalentes.
Para muitos o livro parece indigesto, pois os cortes, saltos e passagens no tempo e espaço são inúmeros. Entretanto, a narração de Duncan é magnifica, um efeito que encontrei apenas em “Os Cantos de Maldoror” de Conde de Lautréamont. Tenho na estante “Vellum” e “Ink” – a conclusão do ciclo iniciado no primeiro volume -, que são obras primas que demonstraram o que se podia fazer com o arsenal literário da fantasia, ficção científica e do horror, uma releitura e reflexão dentro dos subgêneros aos quais estamos acostumados.
Poeta Mórbido
A culpa de tudo é de Tolkien. Em toda aventura de “fantasia” se pensa num grupo de heróis ajudando a restaurar a feliz ordem de características feudais. Alguns dizem que o subgênero de fantasia medieval é apenas uma variação dos livros de cavalaria, uma parodia de Cervantes. Mas às vezes surgem pessoas como China Miéville, que escrevem algo fantástico, como o “Un Lun Dun”. Um livro cuja organização política do mundo sugere que a autoridade pode e deve ser questionada.
Miéville não faz nada de diferente neste livro do que já fez antes de Bas-Lag, ou depois em “The city and the city”, entretanto, é sua maneira de fazê-lo, no marco da narração de ritmo rápido e linguagem simples, que o torna único.
A ideia é da existência de uma “Não Londres” formada por uma população variada e constituída do lixo de uma Londres “normal”; cuja presença do Smog seria um inócuo “ecologismo” e que existem interesses industriais por trás destas ações; a intolerância frente à mestiçagem é demonstrada em Hemi, criança nascida da união entre um humano e um fantasma, capaz de desenvolver-se em ambos os mundos; existe também um tirano que impõe as palavras o significado que deseja, até que estas se rebelam dando um ar divertido ao estilo Lewis Carroll, ainda que falte um pouco de Orwell.
O livro é um grande jogo, construindo imagens difíceis de traduzir – como, por exemplo, a analogia entre janelas e aranhas (black window-black widow)? Que da origem a um dos capítulos mais memoráveis do livro -, além de dinamitar a tradição de maneira maliciosa, já que Miéville faz com que o livro se equivoque. Há tantas ideias sugestivas, monstros, perseguidores e espíritos rebeldes como em qualquer outra novela de China Miéville. Não é um livro ácido, nem controvertido, sua subversão é leve, rompendo pequenos tabus das ficções infantis.
(Poeta Mórbido)