Ilustração de Willian Steig para Escute, Zé Ninguém!
Chamam-te Zé Ninguém! “Homem Comum” e, ao que dizem, começou a tua era, a “Era do Homem Comum”. Mas não és tu que o dizes, Zé Ninguém, são eles, os vice-presidentes das grandes nações, os importantes dirigentes do proletariado, os filhos da burguesia arrependidos, os homens de Estado e os filósofos. Dão-te o futuro, mas não te perguntam pelo passado.
Tu és herdeiro de um passado terrível. A tua herança queima-te as mãos, e sou eu que te digo. A verdade é que todo o médico, sapateiro, mecânico ou educador que queira trabalhar e ganhar o seu pão deve conhecer as suas limitações. Há algumas décadas, tu, Zé Ninguém, começaste a penetrar no governo da Terra. O futuro da raça humana depende, à partir de agora, da maneira como pensas e ages. Porém, nem os teus mestres nem os teus senhores te dizem como realmente pensas e és, ninguém ousa dirigir-te a única critica que te podia tornar apto a ser inabalável senhor dos teus destinos. És “livre” apenas num sentido: livre da educação que te permitiria conduzires a tua vida como te aprouvesse, acima da autocrítica.
Nunca te ouvi queixar: “Vocês promovem-me a futuro senhor de mim próprio e do meu mundo, mas não me dizem como fazê-lo e não me apontam erros no que penso e faço”.
Deixas que os homens no poder o assumam em teu nome. Mas tu mesmo nada dizes. Conferes aos homens que detêm o poder, quando não o conferes a importantes mal intencionados, mais poder ainda para te representarem. E só demasiado tarde reconheces que te enganaram uma vez mais.
Mas eu entendo-te. Vezes sem conta te vi nu, psíquica e fisicamente nu, sem máscara, sem opção, sem voto, sem aquilo que faz de ti “membro do povo”. Nu como um recém-nascido ou um general em cuecas. Ouvi então os teus prantos e lamúrias, ouvi-te os apelos e esperanças, os teus amores e desditas. Conheço-te e entendo-te. E vou dizer-te quem és, Zé Ninguém, porque acredito na grandeza do teu futuro, que sem dúvida te pertencerá. Por isso mesmo, antes de tudo o mais, olha para ti. Vê-te como realmente és. Ouve o que nenhum dos teus chefes ou representantes se atreve a dizer-te:
És o “homem médio”, o “homem comum”. Repara bem no significado destas palavras: “médio” e “comum”.
Não fujas. Tem ânimo e contempla-te. “Que direito tem este tipo de dizer-me o que quer que seja?” Leio esta pergunta nos teus olhos amedrontados. Ouço-a na sua impertinência, Zé Ninguém. Tens medo de olhar para ti próprio, tens medo da crítica, tal como tens medo do poder que te prometem e que não saberias usar. Nem te atreves a pensar que poderias ser diferente: livre em vez de deprimido, direto em vez de cauteloso, amando às claras e não mais como um ladrão na noite. Tu mesmo te desprezas, Zé Ninguém, Dizes: “Quem sou eu para ter opinião própria, para decidir da minha própria vida e ter o mundo por meu?” E tens razão: Quem és tu para reclamar direitos sobre a tua vida? Deixa-me dizer-te.
Diferes dos grandes homens que verdadeiramente o são apenas num ponto: todo o grande homem foi outrora um Zé Ninguém que desenvolveu apenas uma outra qualidade: a de reconhecer as áreas em que havia limitações e estreiteza no seu modo de pensar e agir. Através de qualquer tarefa que o apaixonasse, aprendeu a sentir cada vez melhor aquilo em que a sua pequenez e mediocridade ameaçavam a sua felicidade. O grande homem é, pois, aquele que reconhece quando e em que é pequeno. O homem pequeno é aquele que não reconhece a sua pequenez e teme reconhecê-la; que procura mascarar a sua tacanhez e estreiteza de vistas com ilusões de força e grandeza, força e grandeza alheias. Que se orgulha dos seus grandes generais, mas não de si próprio. Que admira as ideias que não teve, mas nunca as que teve. Que acredita mais arraigadamente nas coisas que menos entende, e que não acredita no que quer que lhe pareça fácil de assimilar.
Comecemos pelo Zé Ninguém que habita em mim: Durante vinte e cinco anos tomei a defesa, em palavras e por escrito, do direito do homem comum à felicidade neste mundo; acusei-te pois da incapacidade de agarrar o que te pertence, de preservar o que conquistaste nas sangrentas barricadas de Paris e Viena, na luta pela Independência americana ou na revolução russa. Paris foi dar a Pétain e Laval, Viena a Hitler, a tua Rússia a Stalin, e a tua América bem poderia conduzir a um regime KKK – Ku-Klux-Klan. Sabes melhor lutar pela tua liberdade que preservá-la para ti e para os outros. Isto eu sempre soube. O que não entendia, porém, era porque de cada vez que tentavas penosamente arrastar-te para fora de um lameiro acabavas por cair noutra ainda pior. Depois, pouco a pouco, às apalpadelas e olhando prudentemente em torno, entendi o que te escraviza: ÉS TU O TEU PRÓPRIO NEGREIRO. A verdade diz que mais ninguém senão tu é culpado da tua escravatura. Mais ninguém, sou eu que te digo!
Esta é nova, hein? Os teus libertadores garantem-te que os teus opressores se chamam Guilherme, Nicolau, papa Gregório XXVIII, Morgan, Krupp e Ford. E que os teus libertadores se chamam Mussolini, Napoleão, Hitler e Stalin.
Un terremoto sacudía el sur de Italia enterrando a mil quinientos napolitanos, Marlene Dietrich interpretaba El ángel azul, Stalin culminaba su usurpación de la revolución rusa, se suicidaba el poeta Vladimir Maiakovski. Los ingleses arrojaban a la cárcel a Mahatma Gandhi, que exigía la independencia y queriendo patria había paralizado a la India, mientras bajo las mismas banderas AUGUSTO CESAR SANDINO alzaba a los campesinos de Nicaragua en las otras Indias, las nuestras, y los marines norteamericanos intentaban vencerlo por hambre incendiando las siembras.
En los Estados Unidos había quien bailaba el reciente boogie-woogie, pero la euforia de los locos años 20 había sido noqueada por los feroces golpes de la crisis del 29. La bolsa de Nueva York había caído a pique y en derrumbe había volteado los precios internacionales y estaba arrastrando al abismo a varios gobiernos latinoamericanos. En el despeñadero de la crisis mundial, la ruina del precio del estaño tumbaba al presidente Hernando Siles, en Bolivia, y colocaba en su lugar a un general, mientras el desplome de los precios de la carne y el trigo derribaban al presidente Hipólito Yrigoyen, en la Argentina, y en su lugar instalaba a otro general. En la República Dominicana, la caída del precio de la azúcar habría el largo ciclo de la dictadura del también general Rafael Leónidas Trujillo, que inauguraba su poder bautizando con su nombre a la capital y al puerto.
En el Uruguay, el Golpe de Estado iba a estallar tres años después. En 1930, el país sólo tenía ojos y oídos para el primer Campeonato Mundial de Fútbol. Las victorias uruguayas en las dos últimas olimpíadas, disputadas en Europa, habían convertido al Uruguay en el inevitable anfitrión del primer torneo. Doce naciones llegaron al puerto de Montevideo. Toda Europa estaba invitada, pero sólo cuatro seleccionados europeos atravesaron el océano hacia estas playas del sur:
– Eso está muy lejos de todo? decían en Europa… Y el pasaje sale caro?
Un barco trajo desde Francia el trofeo Jules Rimet, acompañado por el propio don Jules, presidente de la FIFA, y por la selección francesa de fútbol, que vino a regañadientes Uruguay estrenó con bombos y platillos un monumental escenario construido en ocho meses. El estadio se llamó Centenario, para celebrar el cumpleaños de la Constitución que un siglo antes había negado los derechos civiles a las mujeres, a los analfabetos y a los pobres.
En las tribunas no cabía un alfiler cuando Uruguay y Argentina disputaron la final del campeonato. El estadio era un mar de sombreros de paja. También los fotógrafos usaban sombreros, y cámaras con trípode. Los arqueros llevaban gorras y el juez lucía un bombachudo negro que le cubría las rodillas.
La final del Mundial del 30 no mereció más que una columna de veinte líneas en el diario italiano La Gazzetta dello Sport. Al fin y al cabo, se estaba repitiendo la historia de las Olimpíadas de Amsterdam, en 1928; los dos países del río de la Plata ofendían a Europa mostrando dónde estaba el mejor fútbol del mundo.
Como en el 28, Argentina quedó en segundo lugar. Uruguay, que iba perdiendo 2 a 1 en el primer tiempo, acabó ganando 4 a 2 y de consagró campeón. Para arbitra la final, el belga John Langenus había exigido un seguro de vida, pero no ocurrió nada más grave que algunas trifulcas en las gradas. Después, un gentío apedreó el consulado uruguayo en Buenos Aires.
El tercer lugar del campeonato correspondió a los Estados Unidos, que contaban en sus filas con unos cuantos jugadores escoceses recién nacionalizados, y el cuarto puesto fue para Yugoslavia. Ni un solo partido terminó empatado. El argentino Stábile encabezó la lista de goleadores, con ocho tantos, seguido por el uruguayo Cea, con cinco. El francés Louis Laurent hizo el primer gol de las historia de los mundiales, jugando contra México.
Durante os anos finais da guerra, eu tinha deixado de imaginar o que era e não era suposto ser. E muitas vezes tinha dito às mulheres na vizinhança que eu não tinha a certeza se alguma vez voltaria a Gion – mas a verdade é que sempre soubera que voltaria. O meu destino, qualquer que ele fosse, esperava-me lá. De qualquer modo, nestes anos eu tinha aprendido a suspender toda a água na minha personalidade transformando-a em gelo, como poderiam dizer. Só com o parar do fluxo natural dos meus pensamentos desta maneira podia suportar a espera. Ouvir agora Nobu referir-se ao meu destino… Bom, senti que ele tinha quebrado o gelo dentro de mim e acordado os meus desejos mais uma vez…
Há três maneiras de fazer napalm. Eu sabia que Tyler ia matar meu chefe. No momento em que senti cheiro de gasolina nas mãos, quando eu disse que queria abandonar o meu emprego, estava dando permissão a ele. Fique à vontade. Mate meu chefe.
Oh, Tyler.
Sei que um computador explodiu.
Sei disso porque Tyler sabe disso.
Não quero saber, mas se usa uma broca de joalheiro para fazer um buraco na parte superior do monitor do computador. Todos os macacos espaciais sabem disso. Fui eu quem digitei as anotações de Tyler. É uma nova versão da bomba lâmpada; você faz um orifício na lâmpada e enche de gasolina. Tampa o orifício com cera ou silicone, enrosca a lâmpada num soquete e espera alguém entrar na sala e ligar o interruptor.
No tubo do computador cabe muito mais gasolina do que na lâmpada. Um tubo de raios catódicos, CRT, e aí, ou você remove o plástico que protege o tubo, o que é bem mais fácil de fazer, ou trabalha através dos vãos de ventilação na parte superior do monitor. Primeiro, desligue o monitor da tomada e do computador. Isso também dá certo com televisão. Mas saiba que se houver uma faísca ou até mesmo eletricidade estática produzida pelo carpete, você está morto. Morre queimado e gritando. Como um tubo de raios catódicos pode conter 300 volts de armazenagem elétrica passiva, introduza primeiro o cabo da chave de fenda no capacitador de fornecimento de energia. É aqui que você pode morrer se não usar uma chave de fenda com isolamento.
Há vácuo dentro do tubo de raio catódico, então, quando você fizer o buraco, o tubo vai sugar o ar com um leve assobio. Alargue o buraquinho um pouco mais, depois mais um pouquinho, até conseguir enfiar a ponta de um funil. Depois, encha o tubo com o explosivo de sua preferência. Napalm feito em casa é muito bom. Gasolina pura ou misturada a suco de laranja concentrado e congelado ou com alimento granulado para gatos. Dá um ótimo explosivo misturar permanganato de potássio com açúcar refinado. A ideia é misturar um ingrediente que queime muito rápido com outro ingrediente que produza o oxigênio necessário para a queima. Queima rápido e explode.
Peróxido de bário e pó de zinco. Nitrato de amônia e alumínio em pó. A nouvelle cuisinne da anarquia. Nitrato de bário em molho de enxofre guarnecido com carvão. Isso é pólvora básica. Bon appétit.
Encha o monitor do computador e, quando alguém ligar a luz, serão dois ou três quilos de pólvora explodindo na sua cara. O problema é que, de certa maneira, eu gostava do meu chefe. Se você é macho, é cristão e mora nos Estados Unidos, seu pai é o seu modelo de Deus. E às vezes você encontra um pai no seu trabalho. Só que Tyler não gostava do meu chefe. A polícia está me procurando.
– Não esqueça que você prometeu três vezes. Uma camada grossa e branca começa a se formar na superfície das caixas de leite, dentro da geladeira. Olhe, eu mostro, está começando a separar.
– Não se preocupe. Essa camada branca é glicerina. Você pode misturar a glicerina outra vez para fazer o sabão. Ou pode jogar fora.
Tyler molha os lábios com saliva e põe minha mão sobre sua coxa, a palma virada para baixo, no roupão de banho aflanelado.
– Você pode misturar glicerina com ácido nítrico e fazer nitroglicerina – diz ele.
Respiro pela boca e repito, nitroglicerina.
Ele molha novamente os lábios e beija as costas da minha mão.
– Pode misturar nitroglicerina com nitrato de sódio e pó de serra e fazer dinamite – continua Tyler.
O beijo molhado brilha nas costas da minha mão. Dinamite, repito, e me sento sobre os calcanhares. Tyler levanta a tampa da lata de soda. Pode explodir uma ponte.
– Pode misturar nitroglicerina com mais ácido-nítrico e parafina e fazer gelatina explosiva – continua ele.
– Pode explodir um prédio – decreta Tyler. Tyler inclina a lata de soda sobre o beijo molhado, nas costas da minha mão.
– Isto é queimadura química, mas dói muito mais do que queimadura de fogo. É pior que cem cigarros.
O beijo molhado brilha nas costas da minha mão
– Você vai ganhar uma cicatriz.
Tendo bastante sabão, é possível explodir o mundo. Agora se lembre do que prometeu. E Tyler despeja a soda. A saliva de Tyler teve duas consequências. O beijo molhado colou os flocos de soda nas costas da minha mão e ficou queimando. Esse foi o primeiro efeito. O segundo é que a soda só queima se for misturada com água. Ou saliva.
– É queimadura química – diz Tyler – e dói muito mais do que qualquer queimadura que você conheça. Você pode usar soda para desentupir cano de esgoto.
Fecho os olhos.
Uma pasta de soda e água pode furar uma panela de alumínio. Misturada com água, a soda esquenta a mais de duzentos graus, à medida que vai esquentando queima as costas da minha mão, e Tyler põe a mão sobre a minha e nossas mãos se abrem sobre a minha perna, na calça suja de sangue, e Tyler diz para eu prestar atenção porque é o momento mais importante da minha vida.
– Porque se até agora foi uma história, daqui para a frente será outra história. Este é o momento mais importante da nossa vida.
A soda cáustica grudada perfeitamente sobre o beijo de Tyler é uma fogueira, um ferro em brasa um reator atômico derretendo minha mão no final de uma estrada muito, muito longa que vejo estender-se na minha frente. Tyler pede que eu volte e fique com ele. Minha mão vai desaparecendo, minúscula no horizonte, no final da estrada. Imagine o fogo queimando, só que, agora, além do horizonte. No crepúsculo.
– Volte para a dor – ordena Tyler.
Isso me lembra a meditação dirigida dos grupos de apoio. Não pense na palavra “dor”. A meditação dirigida funciona para o câncer, mas não para isto.
– Olhe para a sua mão – diz Tyler. Não olhe para a sua mão.
E não pense nas palavras “queimar”, “carne”, “pele”, “carbonizar”. Não ouça os próprios gritos. Meditação dirigida. Você está na Irlanda. Feche os olhos. Você está na Irlanda no verão, depois da faculdade, e está bebendo num pub próximo ao castelo onde ônibus diários carregados de turistas ingleses e americanos chegam para beijar a pedra Blarney.
– Não limpe. Sabão e o sacrifício humano andam de mãos dadas – diz Tyler.
Você sai do pub com outros homens e caminha em silêncio por entre os carros molhados pela chuva que acabou de cair. É noite. E chega ao castelo da pedra Blarney. Os pisos do castelo estão podres, e você sobe as escadas de pedra, a escuridão vai ficando mais e mais profunda por todo lado, a cada degrau. Todos sobem em silêncio, é a tradição deste pequeno ato de rebeldia.
– Ouça, abra os olhos – diz Tyler. Na história antiga – continua ele – os sacrifícios humanos eram feitos em colinas à beira dos rios. Eram milhares de pessoas. Ouça o que estou dizendo. Nesses sacrifícios os corpos eram queimados numa pira.
– Pode chorar – diz Tyler.
– Pode ir até a pia e deixar a água correr na sua mão, mas antes precisa saber que você é um estúpido e que vai morrer. Olhe para mim.
Você está na Irlanda.
– Pode chorar – diz Tyler – mas cada lágrima que cair nos flocos de soda vai deixar a marca de uma queimadura de cigarro.
Meditação dirigida. Você está na Irlanda no verão, depois da faculdade, e talvez tenha sido quando desejou a anarquia pela primeira vez. Muito antes de conhecer Tyler Durden, antes de mijar no seu primeiro crême anglaise, aprendeu pequenos atos de rebeldia. Na Irlanda. Você está na plataforma, no alto da escadaria do castelo.
– Podemos pôr vinagre para neutralizar a queimadura, mas você vai ter de pedir – diz Tyler. Depois que dezenas de pessoas são sacrificadas e queimadas, continua Tyler, uma gosma branca desce pela encosta e cai no rio. Primeiro você terá de chegar ao fundo.
Você está na plataforma do castelo irlandês rodeado pela escuridão abissal, e na sua frente, não muito longe, há um muro de pedra.
– Chove na pira ardente ano após ano, as pessoas são queimadas ano após ano, e a água penetra no carvão que se transforma em soda cáustica, e a soda se mistura com a banha derretida dos sacrifícios e uma gosma branca de sabão se desprende do pé do altar e desce pela encosta em direção ao rio.
E os irlandeses que estão em volta de você e de seu pequeno ato de rebeldia no meio da escuridão aproximam-se da beira da plataforma, param sobre a escuridão abissal e começam a mijar. E dizem, vá em frente, solte seu fantástico mijo americano farto e amarelo e cheio de vitaminas. Farto, caro e inútil.
– Este é o momento mais importante da sua vida – diz Tyler – e você nem está aqui para ver.
Você está na Irlanda. Ah, e está mijando. Ah, sim. Tem cheiro de amônia e das doses diárias de vitamina B.
Onde o sabão cai no rio, diz Tyler, depois de milhares de anos de chuva e gente morta, os antigos descobrem que as roupas lavadas nesse lugar ficam mais limpas.
Estou mijando na pedra Blarney.
– Porra! – grita Tyler.
Estou mijando na calça preta manchada de sangue ressecado que quase fez meu chefe vomitar. Você está numa casa alugada da Paper Street.
– Isso não é nada – diz Tyler.
– É só um sinal – diz Tyler. Tyler é cheio das informações úteis. As culturas que não conhecem o sabão, continua ele, usam a própria urina e a urina de seus cachorros para lavar as roupas e o cabelo, por causa do ácido úrico e da amônia.
Sinto cheiro de vinagre, e o fogo que queima a minha mão, no fim da longa estrada, é apagado. Sinto cheiro de soda cáustica penetrando nas cavidades nasais e um cheiro de vômito hospitalar de mijo e vinagre.
– Fizeram bem em matar toda aquela gente – continua Tyler.
As costas da sua mão estão vermelhas e inchadas como dois lábios perfeitos do beijo de Tyler. Em volta do beijo, as queimaduras provocadas pelas lágrimas de alguém que chorou.
– Abra os olhos – diz Tyler, com o rosto banhado em lágrimas. – Meus parabéns. Você está a um passo do fundo.
Vai ver – continua ele – que o primeiro sabão foi feito de heróis. Pense nos animais usados em testes de produtos. Pense nos macacos lançados ao espaço. – Se eles não morressem, se não sofressem, sem o sacrifício deles não seríamos nada – conclui Tyler.
Toco a sua boca com um dedo, toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se, pela primeira vez, a sua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que, por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que minha mão desenha em você.
Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõe-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.
Encontrou-os intactos, entre as plantas pré-históricas e os charcos fumegantes e os insetos luminosos que tinham desterrado do quarto qualquer vestígio da passagem dos homens pela terra, e não teve serenidade para levá-los para a luz, mas ali mesmo, de pé, sem a menor dificuldade, como se estivessem escritos em castelhano sob o brilho deslumbrante do meio-dia, começou a decifrá-los em voz alta.
Era a história da família, escrita por Melquíades inclusive nos detalhes mais triviais, com cem anos de antecipação. Redigira-a em sânscrito, que era a sua língua materna, e cifrara os versos pares com o código privado do imperador Augusto e os ímpares com os códigos militares lacedemônios. A proteção final, que Aureliano começava a vislumbrar quando se deixou confundir pelo amor de Amaranta Úrsula, radicava em Melquíades ter ordenado os fatos não no tempo convencional dos homens, mas concentrando tudo em um século de episódios cotidianos, de modo que todos coexistiram num mesmo instante. Fascinado pela descoberta, Aureliano leu em voz alta, sem saltos, as encíclicas cantadas que o próprio Melquíades fizera Arcadio escutar e que, na realidade, eram as predições da sua execução, e encontrou anunciado o nascimento da mulher mais bela do mundo que estava subindo ao céu de corpo e alma, e conheceu a origem de dois gêmeos póstumos que renunciavam a decifrar os pergaminhos, não só por incapacidade e inconstância, mas porque as suas tentativas eram prematuras. Neste ponto, impaciente por conhecer a sua própria origem, Aureliano deu um salto.
Então começou o vento, fraco, incipiente, cheio de vozes do passado, de murmúrios de gerânios antigos, de suspiros de desenganos anteriores às nostalgias mais persistentes. Não o percebeu porque naquele momento estava descobrindo os primeiros indícios do seu ser, num avô concupiscente que se deixava arrastar pela frivolidade através de um ermo alucinado, em busca de uma mulher formosa a quem não faria feliz. Aureliano o reconheceu, perseguiu os caminhos ocultos da sua descendência e encontrou o instante da sua própria concepção entre os escorpiões e as borboletas amarelas de um banheiro crepuscular, onde um operário saciava a sua luxúria com uma mulher que se entregava a ele por rebeldia. Estava tão absorto que também não sentiu a segunda arremetida do vento, cuja potência ciclônica arrancou das dobradiças as portas e as janelas, esfarelou o teto da galeria oriental e desprendeu os cimentos. Só então descobriu que Amaranta Úrsula não era sua irmã, mas sua tia, e que Francis Drake tinha assaltado Riohacha só para que eles pudessem se perseguir pelos labirintos mais intrincados do sangue, até engendrar o animal mitológico que haveria de pôr fim à estirpe.
Macondo já era um pavoroso rodamoinho de poeira e escombros, centrifugado pela cólera do furacão bíblico, quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo com fatos conhecidos demais e começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando-o à medida que o vivia, profetizando-se a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo a si mesmo num espelho falado. Então deu Outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias da sua morte. Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.
Y entonces resolví asistir al estadio. Como era un encuentro más sonado que todos los anteriores, tuve que irme temprano. Confieso que nunca en mi vida he llegado tan temprano a ninguna parte y que de ninguna tampoco he salido tan agotado.
Alfonso y Germán no tomaron nunca la iniciativa de convertirme a esa religión dominical del fútbol, con todo y que ellos debieron sospechar que alguna vez me iba a convertir en ese energúmeno, limpio de cualquier barniz que pueda ser considerado como el último rastro de civilización, que fui ayer en las graderías del municipal. El primer instante de lucidez en que caí en la cuenta de que estaba convertido en un hincha intempestivo, fue cuando advertí que durante toda mi vida había tenido algo de que muchas veces me había ufanado y que ayer me estorbaba de una manera inaceptable: el sentido del ridículo. Ahora me explico por qué esos caballeros habitualmente tan almidonados, se sienten como un calamar en su tinta cuando se colocan, con todas las de la ley, su gorrita a varios colores.
Es que con ese solo gesto, quedan automáticamente convertidos en otras personas, como si la gorrita no fuera sino el uniforme de una nueva personalidad. No sé si mi matrícula de hincha esté todavía demasiado fresca para permitirme ciertas observaciones personales acerca del partido de ayer, pero como ya hemos quedado de acuerdo en que una de las condiciones esenciales del hinchaje es la pérdida absoluta y aceptada del sentido del ridículo, voy a decir lo que vi –o lo que creí ver ayer tarde– para darme el lujo de empezar bien temprano a meter esas patas deportivas que bien guardadas me tenía. En primer término, me pareció que el Junior dominó a Millonarios desde el primer momento. Si la línea blanca que divide la cancha en dos mitades significa algo, mi afirmación anterior es cierta, puesto que muy pocas veces pudo estar la bola, en el primer tiempo, dentro de la mitad correspondiente a la portería del Junior. (¿Qué tal va mi debut como comentarista de fútbol?).
Por otra parte, si los jugadores del Junior no hubieran sido ciertamente jugadores sino escritores, me parece que el maestro Heleno habría sido un extraordinario autor de novelas policíacas. Su sentido del cálculo, sus reposados movimientos de investigador y finalmente sus desenlaces rápidos y sorpresivos le otorgan suficientes méritos para ser el creador de un nuevo detective para la novelística de policía. Haroldo, por su parte, habría sido una especie de Marcelino Menéndez y Pelayo, con esa facilidad que tiene el brasileño para estar en todas partes a la vez y en todas ellas trabajando, atendiendo simultáneamente a once señores, como si de lo que se tratara no fuera de colocar un gol sino de escribir todos los mamotretos que don Marcelino escribiera. Berascochea habría sido, ni más ni menos, un autor fecundo, pero así hubiera escrito setecientos tomos, todos ellos habrían sido acerca de la importancia de las cabezas de alfiler. Y qué gran crítico de artes habría sido Dos Santos –que ayer se portó como cuatro– cortándole el paso a todos los escribidorcillos que pretendieran llegar, así fuera con los mayores esfuerzos, a la portería de la inmortalidad. De Latour habría escrito versos. Inspirados poemas de largometraje, cosa que no podría decirse de Ary. Porque de Ary no puede decirse nada, ya que sus compañeros del Junior no le dieron oportunidad de demostrar al menos sus más modestas condiciones literarias.
Y esto por no entrar con los Millonarios, cuyo gran Di Stéfano, si de algo sabe, es de retórica.
No creo haber perdido nada con este irrevocable ingreso que hoy hago – públicamente – a la santa hermandad de los hinchas. Lo único que deseo, ahora, es convertir a alguien. Y creo que va a ser a mi distinguido amigo, el doctor Adalberto Reyes, a quien voy a convidar a las graderías del Municipal en el primer partido de la segunda vuelta, con el propósito de que no siga siendo –desde el punto de vista deportivo– la oveja descarriada.
O mais absurdo da situação é que nunca pareceram tão felizes em público como naqueles anos de infortúnio. Pois na realidade foram os anos de suas vitórias maiores sobre a hostilidade soterrada de um meio que não se resignava a admiti-los como eram: diferentes e inovadores, e portanto, transgressores da ordem tradicional. Contudo, essa tinha sido a parte fácil para Fermina Daza.
A vida mundana, que tantas incertezas lhe trazia antes de conhecê-la, não passava de um sistema de pactos atávicos, de cerimônias banais, de palavras previstas, com o qual se entretinham uns aos outros na sociedade para não se assassinarem. O signo dominante desse paraíso da frivolidade provinciana era o medo do desconhecido. Ela o definira de um modo mais simples: “O problema da vida pública é aprender a dominar o terror, o problema da vida conjugal é aprender a dominar o tédio.”
Tinha feito descoberta de repente com a nitidez de uma revelação no instante em que entrou arrastando a interminável cauda de noiva no vasto salão do Clube Social, rarefeito pelos vapores misturados de tantas flores, o brilho das valsas, o tumulto de homens suarentos e mulheres trêmulas que a olhavam sem saber ainda como iam conjurar aquela ameaça deslumbrante que lhes mandava o mundo exterior. Acabava de fazer vinte e um anos e mal tinha saído de casa para ir ao colégio, mas lhe bastou um olhar circular para compreender que seus adversários não estavam dominados pelo ódio e sim paralisados pelo medo. Em vez de assustá-los, como estava ela assustada, fez a caridade de os ajudar a conhecê-la.
Ninguém foi diferente daquilo que ela queria que fosse, como lhe ocorria com as cidades, que não lhe pareciam melhores nem piores e sim como as construía em seu coração. De Paris, apesar da chuva perpétua, dos lojistas sórdidos e da grosseria homérica dos cocheiros, ela havia de se lembrar sempre como a cidade mais formosa do mundo, não porque na realidade fosse ou deixasse de ser, e sim porque ficara vinculada à saudade de seus anos felizes.
Agora que tudo já foi engolido, é difícil imaginar coisas vivas desse jeito. Eu percebia que estava mal por começar a escrever bem. Era como um presente. Menos que isso, bem menos, era como um chulo adicional de insalubridade por viver ali, no mundo. Vamos lá, durante essa semana a caneta lhe renderá palavras a mais, sintaxes perfeitas, metáforas brilhantes. Articular vocábulos fantasmagóricos, iludir mocinhas com sonetos refinados sobre a primavera e a bossa nova. Tudo por preço simples: sua vontade de acordar. Aqueles dias eram tão lentos e a época tornava-se tão eufórica. Pela manhã, já não sabia se o mau grado a responder o despertador era só uma indisposição do dia a dia ou realmente era preguiça de viver.
Era tanta coisa ao mesmo tempo. Acho que as pessoas não merecem isso. A cidade era como um órgão doente e inflamado. O país, um grande corpo moribundo. Camadas esverdeadas de pus entravam pela minha janela. O alastrim social adoecia as pessoas mesmo que protegidas dentro de suas casas. Os psicanalistas eram os novos padres. E os antigos padres inventaram a castração. Depois, inventaram a masturbação. E disseram que o mundo não seria o bastante pra gozar. Desenharam um buraco vazio no homem.
Meus rins já se tornavam motores velhos e meus pulmões já eram dois pedaços secos de carniça. O meu ópio legalizado. Qualquer pancada na cabeça valia. Fugir. Pra longe. Parar de tossir papéis com carimbos, protocolos de seções administrativas organizadas em estratificações robóticas. Usar escritos pra lubrificar o que sobrava das engrenagens. Como ser um bom cidadão preparado para o mercado de trabalho sem ser engolido pelos tentáculos do kraken que era o estado? Não, não queriam indivíduos, queriam talheres, ferramentas. E ferramentas não pensam. Noites sem eira nem beira que se misturavam ao cheiro angustiante de rivotril e licores de menta. A vida era um cigarro. E me tragava aos poucos. Como um pacto demoníaco. Um prazer aprendido de baforar almas incertas no ar, em troca de alguns anos a menos. Talvez muitos. Era justo.
Aonde chegamos que ganhar na loteria é um motivo de alegria, um ideal? Bancos diziam pelas ruas: “Realize agora seu sonho de ter um carro próprio com nossos planos!” O sonho humano foi resumido a isso. Ninguém queria carros, mas desejavam camaros e ferraris. Comer um cachorro quente no seu João certamente não era a mesma coisa de comer um Subway, dito saudável, com todos aqueles quadros bem nítidos de legumes e cookies espalhados pelas paredes bem limpas. Por que as atendentes tinham a expressão tão triste? Eu não quero Sky, amigo. Queria uma programação decente e não precisar pagar pra ver algum nível de cultura sair da merda da TV, que não fossem as mesmas marionetes rindo de piadas sem graça e bundas cheias de celulite iludindo algum torcedor de um time inútil, com uma cerveja na mão. Que importa o símbolo? Que importa se a esquerda ou a direita vão dirigir o país se ambos querem o lucro? Foices e martelos e tucanos e letras incontáveis eram a mesma sopa de bernes empapadas de suor humano. Comprar pão antes de ir pra casa. Que até a alma está à venda. As clínicas terapêuticas são a prova concreta de que a humanidade faliu. Nós falhamos. Nós desistimos.
Perdeu-se a capacidade de afetar e ser afetado. É tudo mercadoria. Quando jovem e leitor de Hugo, imaginava que o amor se cultivava. Como margaridas ou os tomates da minha tia Soraya. Que se pusessem as sementes cor de aurora nalguma terra fria e se esperasse entropia fazer a mágica. Otário. Depois, com os ultra-românticos, pensei que era substância. Que se dava a alguém como uma bandeja de brigadeiros depois do almoço. Triste. As flores da primavera murcharam e eu nem percebi. Tanto precisei penar no deserto pra perceber que não estou isolado de nada. E que até folhas e os beijos e os buracos negros amam em mim e empurram-me pra frente, mesmo encarando um mar de corolas ou cadeiras de tortura.
Aquém de mim, e além de mim, eu sou a própria dinâmica. Mas os homens aprenderam a ver só os recortes. Porque seus limites eram a extensão da moldura de seus olhos. Perderam o movimento. E se tudo é movimento, a melhor forma de viver é dançando. Entre a euforia e a despotencialização do corpo, aprendi a não hesitar perante o abismo. O quão absurdo era o “eu te amo”, se ninguém ama nada além do que resto do mundo, das horas e os detalhes do dia permitem. Porque eu só participo de tudo isso. E vejo as coisas passarem como filmes. Um fantasma parado e perpassado pelas coisas que querem ser escritas. Amadas. Subjugadas ao resto que o caos permite eliciar.
Percebo, atento, que o amor é que nem vento. E é preciso deixar chocar no rosto. O resto do planeta corroía em ferrugem enquanto flores nasciam nas crateras do fim do mundo. “Meu dia foi azul” Ela me disse. E eu, que só via em cinzento, demorei pra entender. Porque já tinha sido engolido. Porque entender e descrever as cordas que te prendem, os silícios que te sangram, não eliminam a doença que aflige. Só te mostram o que já está perdido.