Você está¡ vendo os artigos na categoria Chamado Selvagem
The library by Norvhic Fernandez – Áustria
***
Foi num sábado, num sábado que despertei. Abri os olhos, acordei olhando para o mais belo céu que admirei ou que sonhei. Despertei no leito 11, da unidade de tratamento intensivo do hospital central. O psicólogo falava comigo sobre o dia e as novidades da semana, mas não percebeu que estava acordada.
Foi num sábado, num sábado que me explicaram que estava internada há dois meses, que estive morta por quatro minutos e que tive muita sorte. Mas eu não conseguia entender o porquê de estar naquele local. A assistente social me disse para não me preocupar, que os custos do hospital estavam sendo pagos pelo seguro, mas isso pouco me importava, eu queria apenas admirar aquele céu mais uma vez.
Foi num sábado, num sábado que saí para um espetáculo de música suburbana, me vesti com um vestido preto em estilo art déco, um “corselet” cinza e vermelho trançado por cima, botas com salto alto, unhas pintadas de azul-marinho, e com uma meia-calça invisível. Era o que eu costumava chamar de estilo déco grunge. Cheguei ao espetáculo com tempo de cumprimentar os conhecidos e apreciar a banda que fazia uma versão mais moderna de All Tomorrow’s Parties do Velvet Underground.
Foi num sábado, num sábado que ele passou por mim e me disse que eu parecia uma fotografia de uma memória feliz. Ele tinha olhos vivos, olhos de natureza morta.
Foi num sábado, num sábado que fui deixada numa caçamba de lixo. Onde perscrutei o abismo da voracidade de viver, de onde podia tocar os sonhos e torna-los realidade. De onde fui arrancada a fórceps da simbiose com a entropia.
Foi num sábado, num sábado que eu fui assassinada…
Foi num sábado, num sábado que eu despertei pela primeira vez e vi o mundo sem o filtro da limitação humana.
Foi num sábado, num sábado que vi olhos de natureza morta…
Foi num sábado…
(Poeta Mórbido)
Imagem by Zenechka
***
O mundo tornou-se algo estranho a sua percepção. Sentia a cidade pulsar como um coração bombeando sangue. As primeiras semanas que se seguiram a sua morte foram mágicas, não como a mágica fútil do vendedores de ilusão. Era como se toda a realidade se modificasse a sua vontade. O universo se encarregava de tudo.
Após sua morte… Tornou-se poderosa. Capaz de influenciar pensamentos, desejos e entropia. O que ela estava se tornando? Quem ela era agora? Humana? Talvez um espírito de vingança que vaga pela cidade – ela já leu isso em algum quadrinho. Adormecia. Fora a semana mais louca de toda sua vida, onde os sete dias da semana realmente não passaram de sete horas de um domingo qualquer. Mas por fim, adormeceu! Sonhou tornando-se “la higuera” de Juana de Ibarbourou.
Havia morrido num sábado, num sábado por olhos de natureza morta. E já não conseguia diferenciar a realidade do sonho e nem se a realidade não era uma grande prisão.
Amava a banda Velvet Underground…
Mais do que a pergunta sobre o que estava acontecendo consigo e se ainda era humana, foi uma fagulha sem importância alguma que adentrou sua mente: “Como vou explicar o estado do apartamento ao sindico? E será que o seguro cobre os tacos de madeira que tornaram-se rizomas?”
(Poeta Mórbido)
*
Despertou do torpor ritualístico ao qual estava encarcerado. Pensou nos aspectos mais importantes de sua condição, naquelas pequenas coisas triviais aos quais os repugnantes humanos não se dão conta. Primeiramente pensou seu sistema circulatório, alongou-se, retirando-se da letargia, daquele rigor mortis. Tudo estava nos detalhes. Pensou em batimentos cardíacos, 60 batimentos cardíacos por minuto em situação de repouso, 130 batimentos por minuto em situação de esforço. Lembrou-se de respirar, num mesmo ritmo sistólico e diastólico. Poucos eram os artistas capazes de lembrar todas as sutilezas da existência humana, era uma arte que apenas algumas pessoas ligadas à tanatologia poderiam apreciar.
Cada pequena micro ação, micro função, cuidadosamente calculada pelo córtex frontal, a quantidade exata de força aplicada aos músculos, o peso correto sobre os ossos e ligamentos, tudo equilibrado e quantificado. Um esforço constante para manter o rebanho seguro de suas crenças e não chamar a atenção indevida. Tal esforço não seria nada se o toque final fosse mal feito, os olhos…
Os malditos olhos eram a parte mais complicada de toda arte. E ele como um ourives criava os olhos mais belos que se podia criar, dominava a arte como nenhum outro era capaz de fazer. Os poucos de sua espécie iam até ele para aprender a disfarçar os olhos tão bem como o que ele fazia. Mas sua arte era muito requintada, não era apenas cor, brilho e sangue. Seus olhos demonstravam alma…
Os olhos que conseguia fazer para si deixariam Michelangelo envergonhado de sua Pietà. Era um grande artista, um grande artista das sombras, um verdadeiro marginal na terra de Nod. Todo esse trabalho artístico jamais poderia ser apreciado, ninguém jamais saberia o esforço hercúleo para humanizar-se e o quão repugnante era misturar-se com o esses seres de barro, lama e fezes.
Éramos faraós e um dos nossos se deixou enganar por truques e palavras de um charlatão! Éramos incubus e sucubus, éramos Itzamna, Hunhunahpu, Hunbatz, Hunchouen; éramos os governantes deste mundo. Então pensamos que não era o bastante. Queríamos mais… Queríamos a própria humanidade, sua estupidez, ignorância, luxuria e excrescência. Não nos bastávamos. Não. Tínhamos que nos rebaixar mais. De deuses passamos aos sábios, de sábios passamos a filósofos, de filósofos a políticos, de políticos a professores, e de professores a mitos. Escondemo-nos tanto. Fingimos tanto, que já não sabemos quem somos. Tão perdidos como o rebanho…
Ah, mas eu não… Eu nunca me esqueço.
(Poeta Mórbido)
****
A escuridão tomava o lugar, o cheiro de merda e enxofre entorpecia minha mente. Ouvi o barulho da ninhada de ratos e senti alguém me espreitando. Estava vendado com o rosto inchado por uma turba de monstros. Naquela noite senti um cheiro diferente, uma excrescência nauseante, um cheiro pútrido agridoce que ninguém mais notava.
Senti a faca talhar um pequeno corte diagonal feito com precisão cirúrgica perpassando a derme, os músculos e arranhar o forame do processo xifóide. Ouvi depois o barulho de corrente. Era a vez do gancho. O mesmo foi engatado no corte e fui içado com força. O sangue verteu e lambeu o solo. Ainda assim, neguei-me a responder qualquer pergunta. E a noite continuou a cortar e esfolar. A ninhada de ratos se satisfez devorando as partes arrancadas. A turba não voltaria àquele galpão. Sobrou apenas meu algoz. Concentrei-me para ouvir o chamado. A floresta me clama. O chamado selvagem.
O algoz percebeu os grilhões sendo rompidos. Pegou o gancho e espreitou a escuridão, percebendo que a escuridão espreitou de volta. Agora ele era a presa. Eu era o monstro que estava liberto e furioso. Era um monstro diferente. Ele moveu-se vagarosamente em direção ao portão. Sentia os olhos seguindo seu movimento e o calor da respiração. Perguntou-se porque estava com medo já que suas glândulas estavam mortas há muitos anos. Parou de simular humanidade, não havia vantagem nenhuma em fingir ser um humano. Sentiu ou pensou sentir ânsia de vomito que em ser humano causava-lhe, repugnante, vermes precisando de reis e políticos para guiá-los para além da latrina fétida do qual nasceram. Era a personificação das sombras, então se fundiu a escuridão e preparou as presas…
É a noite que os espíritos são libertos, espectros do caos e da desordem. À noite escapam os traficantes, pedófilos, estupradores e toda escoria da sociedade. Um ambiente propício para sanguessugas, parasitas que vivem da escoria do que chamamos sociedade humana. Esses parasitas estão bem organizados, estão nas mais diferentes áreas do poder, espalhando corrupção, alastrando maldade, corrompendo mentes com livros e filmes fast-food – divertidos, mas nada nutritivos. É na noite que eles se proliferam, as metáfora de sombras que se afastam da luz, a antítese da vida e do devir.
Mas eu sou o caçador e o lobo, sou o chamado selvagem, a força da vida em seu estado mais bruto. Não existirá nada que não possa farejar; nada que possa me fazer recuar, nenhum ômega pode me parar, sou o alfa. Sou o começo que chega após o fim. Então, verme imundo, saiba que a lua sempre está cheia, mesmo que algumas vezes só possamos ver parte dela, mas pode-se escutar seu chamado, o seu chamado selvagem…
(Poeta Mórbido)