A Voz do Fogo

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Vinho e flor-da-paixão e outras substâncias da terra. Formas pintadas com dedos contorcidos no espaço vazio. Maluco, é claro, mas a loucura é a essência. Exprime o desejo em termos lúcidos e transparentes. Escreva isso para que não seja esquecido quando o espasmo bater. No fundo do estômago agora, a aproximação formigante de êxtases terríveis. Um nome e um chamado, e depois o silêncio. Falha. Nada acontece, e depois mais um afluxo. Súbita perda de calor e convulsão. Abalada, a pálida e apressada travessia de uma escada de sótão se transforma na escalada de uma escadaria Escher, dando tempo para acender apenas a lâmpada fluorescente ultravioleta do banheiro, antes que o veneno suba para se derramar na louça bocejante.

Tremendo e alucinando, vendo agora um brilho opalino invadir até os filamentos rastejantes da bile marrom. Cobras pálidas de luz nadam pelo cabelo emaranhado. Barba adornada com vômito, olhos pestanejantes revirados. Uma necessidade de cuspir, de beber e lavar os ácidos azedos da garganta castigada.

No andar de baixo, há um pouco da atmosfera, uma presença que se adensa à medida que os parágrafos finais se aproximam. Estas palavras, por enquanto não escritas, estão presentes no ar carregado. A televisão está ligada. Passando na janela luminosa e insistente da tela, uma imagem da nova Corte da Coroa, em Campbell Square, atrás da igreja redonda de De Senlis, penetra o vislumbre e o delírio. O resultado de um julgamento de assassinato, tendo o crime ocorrido meses atrás com um morador de Corby, atacado brutalmente em sua própria casa. Todos os detalhes que antes estavam sob sigilo. Os cabelos finos da nuca se levantam. A sala fica mais fria conforme o véu começa a ser retirado. Algo será revelado.

Imagens de parentes, magoados e nem um pouco felizes, deixando o tribunal. Alguma coisa sobre a cabeça da vítima: não conseguiram encontrá-la no local do crime. Desaparecida durante semanas até ser encontrada embaixo de uma cerca viva. Encontrada por um cão preto. Arrastada pela grama e pelo pavimento, sob a luz purpúrea do crepúsculo nas ruas de Corby, as mandíbulas escuras agarradas às pregas pálidas e moles do rosto. Imagens vêm à mente, frias e brilhantes, como o orvalho.

Um dos olhos do troféu está frouxo, meio fechado, o cabelo grisalho endurecido com a lama. Respiração do labrador, um sussurro cálido e urgente na orelha fria e surda. Lábios pretos de chacal repuxados para trás transmitem a sabedoria de Anubis no rosnado, informação de viagem para o morto. A cabeça bate no lixo da sarjeta, balança em sinal de afirmação solene de sua inteligência austera, e sabe o que os santos sabem. Redonda e ensanguentada, um ponto final escrito por uma grande mão.

Um oceano estático transborda, trovejando na mente. Mãos erguidas, assustado, cubro o campo de visão. Olho para personagens e palavras incoerentes que parecem rastejar sobre a pele nua, uma poesia epidérmica. O brilho da lâmpada fica fraco, suave, como se estivesse sendo filtrado pela fumaça. Há uma falta de ar. Cambaleio pela cozinha até a porta dos fundos e do quintal, saio, vacilante, para o mato e à luz das estrelas. Fico mais calmo, aos poucos, na brisa fresca da noite, abaixo do giro lento e distante das constelações.

As mesmas luzes de sempre. Sua continuidade perfeita e sombria. Fico oscilando ali, na saída de emergência de Phipps, o prometido santuário do século ainda por vir, uma galeria incerta e com rangidos, que agora não está tão longe, lá no alto. Através das nuvens agitadas, as plataformas dos que desapareceram há anos, abaixo desses andares inferiores, todos perdidos em clarão de luz ou em pânico, já devorados.

No alto, longos farrapos de nuvem se prendem no arco da noite, um vislumbre de graça interrompido, através de véus de fumaça e fuligem. Esses são os tempos que tememos e desejamos. O murmúrio da fornalha fica mais alto às nossas costas, o ritmo mais distinto. Quase decifrável agora, as sílabas vão se revelando. Nosso mundo está em chamas. A música transborda, de uma luz ardente.

(Alan Moore)



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Categoria: Prosa |
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| Postado em: 10.09.13