Canto 4

Cantos de Maldoror

Eu havia adormecido sobre o penhasco. Aquele que, durante um dia, perseguiu o avestruz pelo deserto, sem conseguir alcançá-lo, não teve tempo para alimentar-se e fechar os olhos. Se for quem me lê, será capaz de adivinhar, com rigor, o quanto o sono se abateu sobre mim. Mas, quando a tempestade empurrou verticalmente uma embarcação, com a palma da sua mão, até o fundo do mar; se, na jangada, houver sobrado, de toda a tripulação, apenas um homem, abatido por cansaços e privações de toda espécie; se as vagas o sacodem, como a um destroço, por horas mais prolongadas que as da vida de um homem; e se uma fragata, que singra mais tarde por essas paragens de desolação, com sua quilha fendida, avista o infeliz que passeia sua carcaça descarnada pelo oceano, e lhe traz um socorro que por pouco não foi tardio, creio que esse náufrago adivinhará melhor ainda até que ponto chegou o torpor dos meus sentidos. O magnetismo e o clorofórmio, quando se dão a esse trabalho, sabem às vezes engendrar igualmente tais catalepsias letárgicas. Não têm qualquer semelhança com a morte; seria uma grande mentira dizê-lo. Mas passemos logo ao sonho, para que os impacientes, famintos por esses gêneros de leitura, não se ponham a rugir, como um bando de cachalotes macrocéfalos que combatem entre si por causa de um fêmea grávida. Sonhava que havia entrado no corpo de um porco, que não me era fácil de sair dali, e que chafurdava meus pelos nos mais lodosos brejos. Teria sido uma recompensa? Objeto dos meus desígnios, não pertencia mais à humanidade! Em meu entendimento, assim o interpretei, e experimentei uma alegria mais que profunda.

Contudo, procurava ativamente qual ato de virtude havia realizado, para merecer, da parte da Providência, esse insigne favor. Agora que repassei na memória as diversas fases daquele esmagamento espantoso contra o ventre do granito, durante o qual a maré, sem que eu o reparasse, passou por duas vezes sobre essa mistura irredutível de matéria morta e carne viva, talvez não seja inútil proclamar que tal degradação não passou, provavelmente, de uma punição, imposta a mim pela justiça divina. Mas quem conhece suas necessidades íntimas ou a causa de suas alegrias pestilentas? A metamorfose nunca apareceu a meus olhos senão como elevada e magnânima ressonância de uma felicidade perfeita, que esperava há muito. Finalmente, havia chegado, o dia em que fui porco! Exercitava meus dentes sobre a casca das árvores; meu focinho, eu o contemplava deliciado. Não restava a menor parcela de divindade; soube elevar minha alma até a excessiva altura dessa volúpia inefável. Ouvi-me, pois, e não vos ruborizeis, inesgotáveis caricaturas do belo, que levais a sério o ridículo relincho da vossa alma, soberanamente desprezível; e que não entendeis porque o Todo Poderoso, em um raro momento de excelente humor, que certamente não ultrapassa as grandes leis gerais do grotesco, permitiu-se, um dia, o mirífico prazer de fazer que um planeta fosse habitado por seres singulares e microscópicos, que são denominados humanos, e cuja matéria se assemelha à do coral vermelho. Sem dúvida tendes razão em vos ruborizar, ossos e gordura, porém escutai. Não invoco vossa inteligência; obrigariam-na a vomitar sangue, pelo horror que vos testemunha; esquecei-a, e sede consequentes convosco mesmos… Lá, não havia mais empecilho.

Quando queria matar, matava; isso me acontecia com frequência, e ninguém o impedia. As leis humanas ainda me perseguiam com sua vingança, embora eu não atacasse a raça que abandonara tão tranquilamente; mas minha consciência não me recriminava de coisa alguma. Durante o dia, lutava com meus novos semelhantes, e o solo ficava semeado de numerosas camadas de sangue coagulado. Era o mais forte, e alcançava todas as vitórias. Feridas pungentes cobriam meu corpo; aparentava não reparar nelas. Os animais terrestres se afastavam de mim, e eu ficava só em minha esplendorosa grandeza. Qual não foi, pois, meu espanto quando, depois de ter atravessado um rio a nado, para afastar-me de paragens que minha fúria havia despovoado, e chegar a outros campos para neles implantar meus hábitos de assassínio e carnificina, tentei caminhar sobre essa margem florida. Meus pés se haviam paralisado; movimento algum vinha trair a verdade dessa imobilidade forçada. Em meio a esforços sobrenaturais para prosseguir meu caminho, foi então que despertei, e senti que voltava a ser homem. A Providência assim fazia-me entender, de um modo que não é inexplicável, que não desejava, mesmo em sonhos, que meus sublimes projetos se realizassem. Voltar a minha forma primitiva foi para mim uma dor tão grande que, durante as noites, ainda choro por causa disso. Meus lençóis estão constantemente molhados, como se tivessem sido postos a enxaguar, e todo dia mando trocá-los. Se não acreditais, vinde ver-me; verificareis, por vossa própria experiência, não a verossimilhança, mas, além disso, a própria verdade da minha afirmação. Quantas vezes, depois dessa noite ao relento, sobre um penhasco, não me juntei às varas de porcos para retomar, como um direito, minha metamorfose destruída! É tempo de abandonar essas lembranças gloriosas, que nada deixam, a sua passagem, senão a pálida via Láctea das lamentações eternas.

(Conde de Lautréamont)



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Categoria: Prosa |
| Postado em: 19.08.13

Canto 2

Cantos de Maldoror

Chegada ao fim da rua, voltou-se lentamente, de modo a impedir-me a passagem. Não tive tempo de me esquivar e achei-me cara a cara com ela. Tinha os olhos inchados e vermelhos. Era fácil ver que me queria falar e que não sabia como consegui-lo. Tornou-se de repente pálida como um cadáver e perguntou-me: “- Podia fazer o favor de me dizer as horas?”. Disse-lhe que não usava relógio e afastei-me rapidamente. Desde esse dia, ó criança de imaginação inquieta e precoce, nunca mais voltaste a ver na rua estreita aquela jovem misteriosa que pisava penosamente com pesadas sandálias o chão dos tortuosos cruzamentos. Não tornará a luzir a aparição deste cometa em chamas, como um triste motivo de fanática curiosidade, sobre a fachada da tua imaginação iludida; e pensarás muitas vezes, demasiadas vezes, e talvez sempre, naquela que não parecia inquietar-se nem com os males nem com os bens da vida presente, e ia andando ao acaso, com um rosto horrivelmente morto, de cabelo eriçado, passo vacilante e braços nadando cegamente nas águas irônicas do éter, como que a procurar nelas a presa ensanguentada da esperança, constantemente sacudida através das imensas regiões do espaço pelo implacável limpa-neve da fatalidade. Não me tornarás a ver e eu não te verei mais!… Quem sabe?

(Conde de Lautréamont)

 



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Categoria: Prosa |
| Postado em: 8.08.12