Entre Quartos e Linhas

Programou a conta de e-mail pra mandar um coração por dia no endereço digital dela. Um pra cada dia que ela passasse de férias de fim de ano no sul, casa de seu pai. Mas havia centenas de corações vermelho-sangue em cada e-mail que ele havia enviado, observou ela depois de ligar o computador. “Não era só um por dia, amor?” Escreveu pra ele depois da surpresa, não tão emocionada quanto talvez se esperasse. “Todos os dias irei te dar todo amor do mundo. Não importa a distância, o espaço-tempo, o dia e a noite. Pra todo o sempre terei todo o sentimento que posso conceber dentro de mim pra você”, respondeu ele, quase de imediato. Os olhos dela brilharam um brilho úmido que refletia todas as cores do quarto em um único ponto branco e cintilante, como uma estrela. Escreveu versos de amor eterno e puro. “Enviar”, clicou. Pareciam sustentar um e outro com a força de suas palavras. Sim. Ele a amava mais do que qualquer outra cosia viva criada por Deus. A personificação pulsante de todo o sentido e razão que um dia poderia mover sua frágil existência. Era ela. Talvez desde os primórdios dos castelos até a união da mente humana e a máquina. Ele a amava. E pra sempre amaria. Como nos livros.

*

A força dos movimentos abruptos e contínuos e das batidas não acordara a criança lá em baixo, na sala. O menino de uns dez anos ainda dormia como um porquinho da índia no sofá. Encolhido. O controle do Playstation 3, ainda vibrando, pousado próximo ao braço. Provavelmente já perdera todos os bônus e créditos de mais um jogo de alta resolução, violento, complexo e sem uma gota de roteiro. Que pena. Deixara de fazer tantos deveres de casa de matemática pra conseguir subir de nível. Teria dormido mesmo? Talvez seus olhos apontados para o assento do sofá estivessem semiabertos. E seus ouvidos mais abertos que um coração apaixonado. O teto ainda vibrava com pequenas pancadas em intervalos de tempo quase calculáveis. Talvez o menino estivesse acordado e tivesse medo. Sem saber. Sem conhecer. O medo daquilo que um dia poderia lhe ferir ainda mais. Mais do que qualquer headshot que um dia tivesse levado em suas madrugadas de jogo.

*

Era um suor salgado que fedia a humanos. Já passara certo tempo e agora os gritos eram audíveis com facilidade. Sua perna estremecia e era posta de formas diversas, quase impensáveis. Marcas vermelhas que lembravam desenhos de criança; subiam pela coxa e estendiam-se pelas costas passando pela virilha e auréolos. Era uma dor boa, que a fazia visitar campos gregos de sensações e epifanias insubstituíveis. A contemplação da obra de arte concretizada em um fundir de corpos. Ainda com aquele odor humano. A Karthasis da criação. Violência medida. Líquidos interiores espirrados e mesclados em pele e vontade. E ela queria mais. Queria tudo. Ali. Talvez depois em outro lugar. Típico ou não. Hoje, quem sabe outro dia. Mas forte. Mas rápido. Queria mais e melhor que ontem. Carne viva irradiada de eletricidade humana. Carne. E ela queria mais. E tudo então estaria bom. Porque a vida é boa. Porque tudo é bom. E quem estava ali e socava cada vez com mais força e mais vontade de potência? Importava? Não. A vida é boa. Tinha alegria. E pra sempre teria. Estava na metade de um curso superior de qualidade. Havia um irmão de dez anos que era inteligente e fazia seus deveres de casa devidamente. E um louco apaixonado até as entranhas no outro lado do país a esperando. Dormindo, talvez. E ainda a amando como nunca amaria qualquer outra coisa viva criada por Deus.

(Poeta Bastardo)



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Categoria: Prosa |
| Postado em: 29.03.12

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