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Pensamento

Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que vêem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para a frente. E, enquanto alguns os vêem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam.

(Antonin Artaud)



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Categoria: Prosa |
| Postado em: 1.11.13

Renunciar à Sede de Poder

autoria:

Quem não conheceu a tentação de ser o primeiro na cidade nada compreenderá do jogo político, da vontade de submeter os outros para deles fazer objetos, nem adivinhará os elementos de que é composta a arte do desprezo. A sede de poder, raros são os que não a tenham num grau ou noutro experimentado: é-nos natural, e contudo, se a considerarmos melhor, assume todos os caracteres de um estado mórbido do qual apenas nos curamos por acidente ou então por meio de um amadurecimento interior, aparentado com o que se operou em Carlos V quando, ao abdicar em Bruxelas, no topo da sua glória, ensinou ao mundo que o excesso de cansaço podia suscitar cenas tão admiráveis como o excesso de coragem. Mas, anomalia ou maravilha, a renúncia, desafio às nossas constantes, à nossa identidade, sobrevém somente em momentos excepcionais, caso limite que satisfaz o filósofo e perturba profundamente o historiador.

(Emil Cioran – História e Utopia)

 



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Categoria: Prosa |
| Postado em: 16.10.13

El gato

Muchas cosas desagradables se pueden decir o imaginar de John. Pero nunca le sospeché una mentira; tenía demasiado desprecio por la gente para inventarse cualquier fábula que le fuera favorable.

De modo que cuando me contó alegre y bebiendo dry martinis la historia –para mí, sobretodo– de uno de sus casamientos fallidos, no tuve duda. Era, o fue, como mirar y oír una película sin posibilidad de recomienzo ni temor sobre su capacidad de ser creída. Tampoco quedaba agujero para una sonrisa.

Yo llegaba, una semana antes, de París y quería actualizar, confirmar y desechar los rumores que me habían llegado sobre amigos, más o menos comunes, durante mi ausencia.

John era un inglés conversador y sabía burlarse de todo con despego, a veces lástima, nunca maldad.

Bebimos y hubo un largo silencio: John parecía meditar indeciso con el ceño fruncido.

Dejó su vaso sobre la mesa y me dijo, conservando su actitud de piernas cruzadas y de resuelto perfil:

– Era francesa y tú la conoces. Tal vez lo sepas porque estabamos practicamente casados. Sólo nos faltaba el sacerdote, el juez y la llegada de unos muebles viejos y caros de los que no quería desprenderse. Bisabuelos y abuelos y padres, casi toda la historia de Francia. A mí sólo me importaba ella, Marie. Ya puedes buscar entre todas las Maries que recuerdes. Estaba loco y a veces pensé que era una locura sexual. Verla, bastaba; oler un pañuelo olvidado, bastaba; entrar al baño después de que ya había salido. Nos veíamos todas las semanas, aquí o en París. Dos o tres días seguidos. Ibamos y volvíamos. Y mi deseo aumentaba cada vez y yo me entregaba a él, escarbaba en él; quería más y más. Y cada más era era como un escalón que me impulsaba a pisar otro. Siempre en descenso porque yo sabía que estaba perdiendo salud y cerebro.

Sin dejar de ofrecerme un hombro, hizo una seña a Jeeves y vinieron dos vasos: dry martini para él y un gin tonic para mí. Encendió la pipa (él sabía que fumar apresuraría mi muerte) y estuvo un rato pensando, casi sonriendo con labios que no endulzaba la alegría. Como ocurre siempre en esta clase de cuentos me mantuve en silencio, esperando; fui recompensado, Johny dijo sin mirarme:

– Al gato lo bauticé Edgar. Y no porque fuera un gato negro con símbolos de horror, blancos, en su pecho.

– Una noche en que Marie, como estaba planeado, llegó al aeropuerto. La recibí, tomamos cocteles con la alegría de siempre, brindamos por la felicidad matrimonial. Esto no hace reír pero es cómico. Fuimos a cenar y luego a mi departamento. No te dije, porque no lo sé y tal vez no me importe, que la portera y semipatrona estaba encaprichada conmigo o, simplemente, me odiaba sin pausa. Algo de eso.

Entramos y encendí la luz. Ella no había estado nunca allí. Miró alrededor con una sonrisa que era de aprobación antes de haber nacido. Y vio, vimos, en medio de la gran cama, con su colcha blanca de señorita, un gato negro, grande, gordo. Un gato que yo veía por primera vez y que parecía acostumbrado a ronronear allí. Con las patas dobladas bajo el pecho nos miró con ojos curiosos y volvió a cerrarlos. Hasta hoy no sé cómo pudo haber entrado. Sospecho, apenas. Me adelante para acariciarle el lomo y la garganta y entonces ella explotó. Que echara el gato inmundo, que iba a llenar la cama de pulgas. A gritos y pateando el suelo. Yo encendí un cigarrillo y abrí la puerta. Le dije que me había hecho feliz encontrar por sorpresa que alguien nos daba la bienvenida. Ella me trató de estúpido y golpeó las manos hasta que el gato corrió hacia la puerta y la sombra del pasillo. Bueno, vamos a tomar otro vaso porque ya vasta como prólogo. Lo que ocurrió es simple y para mí muy trabajoso de explicar. En aquel momento resolví que yo nunca podría casarme con aquella mujer; que era imposible vivir con ella, ser feliz con ella. No se lo dije entonces y el resto de la noche, hasta el cansancio de la madrugada pasaron como lo presentíamos y lo deseabamos.

Bebió de un trago, encendió nuevamente la pipa y sonrió alegre y desafiante. Ahora se volvió para mirarme los ojos y dijo:

– Lo que explica para cualquier tipo inteligente porque desde entonces solo he tenido aventuras y me he propuesto que duren poco.

(Juan Carlos Onetti)



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Categoria: Prosa |
| Postado em: 22.09.13

A Voz do Fogo

autoria:

Vinho e flor-da-paixão e outras substâncias da terra. Formas pintadas com dedos contorcidos no espaço vazio. Maluco, é claro, mas a loucura é a essência. Exprime o desejo em termos lúcidos e transparentes. Escreva isso para que não seja esquecido quando o espasmo bater. No fundo do estômago agora, a aproximação formigante de êxtases terríveis. Um nome e um chamado, e depois o silêncio. Falha. Nada acontece, e depois mais um afluxo. Súbita perda de calor e convulsão. Abalada, a pálida e apressada travessia de uma escada de sótão se transforma na escalada de uma escadaria Escher, dando tempo para acender apenas a lâmpada fluorescente ultravioleta do banheiro, antes que o veneno suba para se derramar na louça bocejante.

Tremendo e alucinando, vendo agora um brilho opalino invadir até os filamentos rastejantes da bile marrom. Cobras pálidas de luz nadam pelo cabelo emaranhado. Barba adornada com vômito, olhos pestanejantes revirados. Uma necessidade de cuspir, de beber e lavar os ácidos azedos da garganta castigada.

No andar de baixo, há um pouco da atmosfera, uma presença que se adensa à medida que os parágrafos finais se aproximam. Estas palavras, por enquanto não escritas, estão presentes no ar carregado. A televisão está ligada. Passando na janela luminosa e insistente da tela, uma imagem da nova Corte da Coroa, em Campbell Square, atrás da igreja redonda de De Senlis, penetra o vislumbre e o delírio. O resultado de um julgamento de assassinato, tendo o crime ocorrido meses atrás com um morador de Corby, atacado brutalmente em sua própria casa. Todos os detalhes que antes estavam sob sigilo. Os cabelos finos da nuca se levantam. A sala fica mais fria conforme o véu começa a ser retirado. Algo será revelado.

Imagens de parentes, magoados e nem um pouco felizes, deixando o tribunal. Alguma coisa sobre a cabeça da vítima: não conseguiram encontrá-la no local do crime. Desaparecida durante semanas até ser encontrada embaixo de uma cerca viva. Encontrada por um cão preto. Arrastada pela grama e pelo pavimento, sob a luz purpúrea do crepúsculo nas ruas de Corby, as mandíbulas escuras agarradas às pregas pálidas e moles do rosto. Imagens vêm à mente, frias e brilhantes, como o orvalho.

Um dos olhos do troféu está frouxo, meio fechado, o cabelo grisalho endurecido com a lama. Respiração do labrador, um sussurro cálido e urgente na orelha fria e surda. Lábios pretos de chacal repuxados para trás transmitem a sabedoria de Anubis no rosnado, informação de viagem para o morto. A cabeça bate no lixo da sarjeta, balança em sinal de afirmação solene de sua inteligência austera, e sabe o que os santos sabem. Redonda e ensanguentada, um ponto final escrito por uma grande mão.

Um oceano estático transborda, trovejando na mente. Mãos erguidas, assustado, cubro o campo de visão. Olho para personagens e palavras incoerentes que parecem rastejar sobre a pele nua, uma poesia epidérmica. O brilho da lâmpada fica fraco, suave, como se estivesse sendo filtrado pela fumaça. Há uma falta de ar. Cambaleio pela cozinha até a porta dos fundos e do quintal, saio, vacilante, para o mato e à luz das estrelas. Fico mais calmo, aos poucos, na brisa fresca da noite, abaixo do giro lento e distante das constelações.

As mesmas luzes de sempre. Sua continuidade perfeita e sombria. Fico oscilando ali, na saída de emergência de Phipps, o prometido santuário do século ainda por vir, uma galeria incerta e com rangidos, que agora não está tão longe, lá no alto. Através das nuvens agitadas, as plataformas dos que desapareceram há anos, abaixo desses andares inferiores, todos perdidos em clarão de luz ou em pânico, já devorados.

No alto, longos farrapos de nuvem se prendem no arco da noite, um vislumbre de graça interrompido, através de véus de fumaça e fuligem. Esses são os tempos que tememos e desejamos. O murmúrio da fornalha fica mais alto às nossas costas, o ritmo mais distinto. Quase decifrável agora, as sílabas vão se revelando. Nosso mundo está em chamas. A música transborda, de uma luz ardente.

(Alan Moore)



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| Postado em: 10.09.13

Sobrevivente

Antes que seja tarde demais, antes que meu avião se aproxime demais da queda, preciso explicar meu nome. Tender Branson. Não é exatamente um nome. É mais uma hierarquia. É o mesmo que uma pessoa, numa outra cultura, chamar uma criança de Tenente Smith ou Bispo Jones. Ou Governador Brown. Ou Doutor Moore. Xerife Peterson. Os únicos nomes na cultura do Credo eram os sobrenomes. O sobrenome vinha do marido. O sobrenome era a forma de reivindicar propriedade. O sobrenome era um rótulo. Meu sobrenome é Branson. Meu posto é Tender Branson. É o posto mais baixo.

A assistente social me perguntou uma vez se o sobrenome não era uma forma de endosso ou maldição quando os filhos e filhas eram contratados para trabalhar no mundo aqui fora. Desde os suicídios, as pessoas do mundo aqui fora fazem a mesma imagem sensacionalista da cultura do Credo que meu irmão, Adam, fazia da cultura delas. No mundo lá fora, meu irmão me dizia, as pessoas eram impulsivas como animais e fornicavam na rua. Hoje, as pessoas aqui fora me perguntam se determinados sobrenomes conseguiam preços mais altos. Alguns sobrenomes determinavam contratos de trabalho mais baratos?

Essas pessoas geralmente me perguntam se alguns pais da Igreja do Credo engravidavam as filhas para aumentar o fluxo de capital. Elas perguntam se as crianças da Igreja do Credo que não tinham permissão para casar eram castradas, ou seja, se eu era. Perguntavam se os filhos da Igreja do Credo se masturbavam, copulavam com animais da fazenda ou sodomizavam uns aos outros, ou seja, se eu o fazia. Se eu fazia, se eu era. Estranhos perguntam, na minha cara, se sou virgem. Sei lá. Esqueci. Ou, esse assunto não é da sua conta. Só para constar, meu irmão Adam Branson era mais velho que eu em três minutos e trinta segundos, mas, pelos padrões da Igreja do Credo, a diferença poderia ter sido de anos.

Isso porque a doutrina do Credo não reconhecia os que chegavam em segundo lugar. Em todas as famílias, o primogênito era chamado de Adam, e seria Adam Branson quem herdaria nossa terra na colônia do distrito da igreja. Todos os filhos após Adam eram chamados de Tender. Na família Branson, sou um dos últimos dos oito Tender Bransons que meus pais soltaram no mundo para ser missionários. Todas as filhas, da primeira à última, eram chamadas de Biddy. Os Tenders tomam conta do rebanho. Às Biddies, dêem seus lances. Talvez ambas as palavras sejam gíria, apelidos para nomes mais tradicionais e compridos, mas não sei quais.

Só sei que se os anciãos da igreja escolhessem uma Biddy Branson para se casar com um Adam de outra família, o nome dela, seu posto na verdade, mudaria para Author. Ao se casar com Adam Maxton, Biddy Branson se tornaria Author Maxton. Os pais desse Adam Maxton também eram chamados de Adam e Author Maxton, até que seu filho recém-casado e sua esposa tivessem um filho. Depois disso, você deveria chamar os dois membros mais velhos da família de Elder Maxton. Na maioria dos casais, quando o primogênito tinha seu primeiro filho, a Elder Maxton já estaria morta em razão de ter tido filho após filho após filho. Quase todos os anciãos da igreja eram homens. O homem podia se tornar um ancião da igreja ao trinta e cinco anos de idade, se ele fosse rápido. Não era complicado.

Não era nada comparado com o mundo aqui fora e seu sistema hierárquico de pais, avós, bisavós, tias e tios, sobrinhas e sobrinhos, cada qual com seu próprio nome. Na cultura do Credo, seu nome mostrava a todos a quem você pertencia. Tender ou Biddy. Adam ou Author. Ou Elder. Seu nome determinava como seria sua vida. As pessoas me perguntam se eu tinha raiva por ter perdido o direito a ter propriedades e uma família só porque meu irmão nasceu três minutos e meio na minha frente. Aprendi a responder que sim. É isso que as pessoas no mundo aqui fora querem ouvir. Mas não é verdade. Nunca tive raiva. Seria o mesmo que ficar com raiva de pensar que, se você tivesse nascido com dedos mais compridos, poderia ter sido violinista. É o mesmo que desejar que seus pais fossem mais altos, mais magros, mais fortes, mais felizes. São detalhes do passado sobre os quais você não tem nenhum controle. A verdade é que Adam nasceu primeiro. E talvez Adam me invejasse porque eu iria sair e ver o mundo. Enquanto eu fazia minha mala para ir embora, Adam estava se casando com uma Biddy Gleason que ele mal conhecia.

Era o corpo de anciãos da igreja que fazia os gráficos elaborados de quem se casaria com qual Biddy de qual família para que aqueles chamados no mundo lá fora de “primos” nunca se casassem. A cada geração, quando os Adams começavam a fazer dezessete anos, os anciãos se reuniam para escolher suas esposas o mais distante de suas árvores genealógicas possível. Havia quase quarenta famílias na colônia do distrito da igreja, e a cada geração quase todas as famílias tinham casamentos e festas. Para um Tender ou uma Biddy, a temporada de casamentos era algo que você observava de longe. Se você fosse uma Biddy, podia sonhar que um dia isso poderia acontecer com você. Se você fosse um Tender, você não sonhava.

(Chuck Palahniuk)



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Categoria: Prosa |
| Postado em: 5.09.13

Ghouls não choram

Desde a minha infância exibi potencial para desbravar as terras ermas. O fato de continuamente me esconder, de me mover velozmente e não fazer barulho são características que me acompanham desde que eu me entendo por gente. Quer dizer, eu e minha vila. Não foi nenhum espanto, portanto, quando me designaram como batedor. Há anos exerço essa função, e há anos corro o risco de morrer ao vasculhar o que restou das terras de meus antepassados por comida, ferramentas, armas e qualquer coisa que possa ser útil para a sobrevivência do meu povo.

Contudo, nem só de sobras vive o homem. Parte essencial da nossa motivação, conhecimento e entretenimento vem dos livros que arrumamos em nossas viagens. É inegável o fato de que aprendemos muito com essas compilações de papel marrom e tinta quase apagada. As histórias de como nossos antecedentes viviam em um mundo completamente diferente – sem água radioativa e garras-da-morte – sempre me intrigou. Não eram apenas momentos de escapismo, mas também de esperança, por serem obras que nos informavam de um mundo que os avós dos nossos pais conheceram, onde plantas eram capazes de crescer em variadas cores e a poeira não se infiltrava por qualquer fresta.

No entanto, ao passo que, em mim, os livros causavam a vontade de não arriscar minha vida passeando fora da vila, nos jovens os elaborados e fantásticos contos os deixavam apenas mais afoitos para se aventurar. Nossa biblioteca era reduzida, e as mesmas histórias, lidas repetidas vezes, continuamente inflamavam os espíritos de nossos filhos. Por isso, quando ouvi falar da existência de um suposto “livreiro” na região, não hesitei em procurá-lo. Era a peça chave para expandir o repertório de nossos leitores.

O livreiro sabia se esconder, mas nada que algumas chapinhas de Nuka-Cola não resolvessem com os mercadores de Canterbury Commons. Em pouco tempo, eu já estava explorando os fétidos esgotos próximos à entrada sul de Washington. Poucos ghouls ferais me notaram, e, mesmo assim, apenas quando meu shishkebab já estava encostado em suas nucas. Alguns dutos adiante, achei o local. Era um verdadeiro oásis literário, com várias pilhas de livros que impregnavam o espaço com o cheiro de mofo. Sentado ao lado de uma vitrola, segurando um pequeno bobblehead da Vault-Tec em suas mãos, estava o dono de tudo isso.

Boris era um ghoul. O cheiro de sua carne necrosada era impregnante, mas ele era refinado em suas atitudes. Recepcionou-me com um solene sorriso, enquanto ajeitava a agulha da vitrola, e perguntou o que eu procurava. Apesar da exibição de livros sobre Nikola Tesla e um Guia de Sobrevivência por Moira Brown, optei pelo caminho inverso. Solicitei histórias que desmotivassem pessoas a explorarem as terras ermas.

Boris exemplificou com diferentes episódios. Que tal uma família separada? Mulher e filha afastadas do pai pela Irmandade de Aço em nome da segurança e isolamento da radiação. Ou um exílio forçado? Um homem é expulso de sua cidade por gradualmente se tornar um ghoul. E uma tormenta pessoal? Pai consegue reencontrar mulher, mas a mesma é espancada e levada embora, puxada pela perna, por super mutantes. De repente você prefere uma devastação emocional? Pai reencontra filha e pede ajuda, mas a mesma o xinga de zumbi e organiza sua própria escolta para resgatar a mãe. Durante a missão, raiders aparecem, e no fogo cruzado entre eles, os super mutantes, e a escolta, todos morrem.

Quando afirmei que queria o livro que possuía estes relatos, Boris não esboçou lágrimas. Seu tom melancólico, acompanhado da faixa “I don’t want to set the world on fire”, foi claro quando ele disse: Eu também gostaria que fossem apenas livros.

Voltei, naquele dia, sem chapinhas, mas carregado de compilações. Mesmo assim, os jovens continuaram ansiosos para explorar as desconhecidas terras áridas. Foi então que entendi que apenas uma história iria ensiná-los a valorizar a vida: as suas próprias.

(Arthur Protasio)
Veja em: Ghouls não choram
Siga o autor: Arthur Protasio



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Categoria: Prosa |
| Postado em: 5.09.13

Canto 4

Cantos de Maldoror

Eu havia adormecido sobre o penhasco. Aquele que, durante um dia, perseguiu o avestruz pelo deserto, sem conseguir alcançá-lo, não teve tempo para alimentar-se e fechar os olhos. Se for quem me lê, será capaz de adivinhar, com rigor, o quanto o sono se abateu sobre mim. Mas, quando a tempestade empurrou verticalmente uma embarcação, com a palma da sua mão, até o fundo do mar; se, na jangada, houver sobrado, de toda a tripulação, apenas um homem, abatido por cansaços e privações de toda espécie; se as vagas o sacodem, como a um destroço, por horas mais prolongadas que as da vida de um homem; e se uma fragata, que singra mais tarde por essas paragens de desolação, com sua quilha fendida, avista o infeliz que passeia sua carcaça descarnada pelo oceano, e lhe traz um socorro que por pouco não foi tardio, creio que esse náufrago adivinhará melhor ainda até que ponto chegou o torpor dos meus sentidos. O magnetismo e o clorofórmio, quando se dão a esse trabalho, sabem às vezes engendrar igualmente tais catalepsias letárgicas. Não têm qualquer semelhança com a morte; seria uma grande mentira dizê-lo. Mas passemos logo ao sonho, para que os impacientes, famintos por esses gêneros de leitura, não se ponham a rugir, como um bando de cachalotes macrocéfalos que combatem entre si por causa de um fêmea grávida. Sonhava que havia entrado no corpo de um porco, que não me era fácil de sair dali, e que chafurdava meus pelos nos mais lodosos brejos. Teria sido uma recompensa? Objeto dos meus desígnios, não pertencia mais à humanidade! Em meu entendimento, assim o interpretei, e experimentei uma alegria mais que profunda.

Contudo, procurava ativamente qual ato de virtude havia realizado, para merecer, da parte da Providência, esse insigne favor. Agora que repassei na memória as diversas fases daquele esmagamento espantoso contra o ventre do granito, durante o qual a maré, sem que eu o reparasse, passou por duas vezes sobre essa mistura irredutível de matéria morta e carne viva, talvez não seja inútil proclamar que tal degradação não passou, provavelmente, de uma punição, imposta a mim pela justiça divina. Mas quem conhece suas necessidades íntimas ou a causa de suas alegrias pestilentas? A metamorfose nunca apareceu a meus olhos senão como elevada e magnânima ressonância de uma felicidade perfeita, que esperava há muito. Finalmente, havia chegado, o dia em que fui porco! Exercitava meus dentes sobre a casca das árvores; meu focinho, eu o contemplava deliciado. Não restava a menor parcela de divindade; soube elevar minha alma até a excessiva altura dessa volúpia inefável. Ouvi-me, pois, e não vos ruborizeis, inesgotáveis caricaturas do belo, que levais a sério o ridículo relincho da vossa alma, soberanamente desprezível; e que não entendeis porque o Todo Poderoso, em um raro momento de excelente humor, que certamente não ultrapassa as grandes leis gerais do grotesco, permitiu-se, um dia, o mirífico prazer de fazer que um planeta fosse habitado por seres singulares e microscópicos, que são denominados humanos, e cuja matéria se assemelha à do coral vermelho. Sem dúvida tendes razão em vos ruborizar, ossos e gordura, porém escutai. Não invoco vossa inteligência; obrigariam-na a vomitar sangue, pelo horror que vos testemunha; esquecei-a, e sede consequentes convosco mesmos… Lá, não havia mais empecilho.

Quando queria matar, matava; isso me acontecia com frequência, e ninguém o impedia. As leis humanas ainda me perseguiam com sua vingança, embora eu não atacasse a raça que abandonara tão tranquilamente; mas minha consciência não me recriminava de coisa alguma. Durante o dia, lutava com meus novos semelhantes, e o solo ficava semeado de numerosas camadas de sangue coagulado. Era o mais forte, e alcançava todas as vitórias. Feridas pungentes cobriam meu corpo; aparentava não reparar nelas. Os animais terrestres se afastavam de mim, e eu ficava só em minha esplendorosa grandeza. Qual não foi, pois, meu espanto quando, depois de ter atravessado um rio a nado, para afastar-me de paragens que minha fúria havia despovoado, e chegar a outros campos para neles implantar meus hábitos de assassínio e carnificina, tentei caminhar sobre essa margem florida. Meus pés se haviam paralisado; movimento algum vinha trair a verdade dessa imobilidade forçada. Em meio a esforços sobrenaturais para prosseguir meu caminho, foi então que despertei, e senti que voltava a ser homem. A Providência assim fazia-me entender, de um modo que não é inexplicável, que não desejava, mesmo em sonhos, que meus sublimes projetos se realizassem. Voltar a minha forma primitiva foi para mim uma dor tão grande que, durante as noites, ainda choro por causa disso. Meus lençóis estão constantemente molhados, como se tivessem sido postos a enxaguar, e todo dia mando trocá-los. Se não acreditais, vinde ver-me; verificareis, por vossa própria experiência, não a verossimilhança, mas, além disso, a própria verdade da minha afirmação. Quantas vezes, depois dessa noite ao relento, sobre um penhasco, não me juntei às varas de porcos para retomar, como um direito, minha metamorfose destruída! É tempo de abandonar essas lembranças gloriosas, que nada deixam, a sua passagem, senão a pálida via Láctea das lamentações eternas.

(Conde de Lautréamont)



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Categoria: Prosa |
| Postado em: 19.08.13

Reflexão

autoria:

Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em autossacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada.

(Ayn Rand)

 



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Categoria: Prosa |
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| Postado em: 13.07.13

Pluralidade

Surrealismo-Evora

Poema – texto dedicado à ferrugem dos dias

A caneta que tenho em punho veio de algum lugar que não sei. Tem livros aqui do lado da França, da Grécia, Alemanha, China. Creio que a mochila é boliviana. Os artigos das revistas na estante vêm de lugares que ninguém se importa muito. Tem pôsteres de Itália e da Inglaterra. A cama de madeira vem do suor brasileiro. A merda que depositei agora pouco no vaso tem restos de alimentos diversos, da Suíça, Estados Unidos, Inglaterra, creio também. O pão é caseiro, veio daqui mesmo. O vírus que me faz o nariz escorrer agora pode ter vindo de muitos lugares. Minha lixeira tem farelos de biscoitos, cinza de cigarros, plástico industrial e jornal velho com um classificado que li, mas não encontrei apartamentos acessíveis, nem empregos que me aceitem como sou; só hermafroditas e prostitutas trocando sexo por dinheiro. Assim talvez caguem mais pluralidade nos vasos deles. Porcelana de algum outro lugar. Látex de restos de camisinha e sêmen velho. O fogo do meu isqueiro pode ter vindo do comburente de deus ou da puta que pariu mesmo. O lagarto na parede veio da África; descobriram que ele come as aranhas marrons de Curitiba. Muita gente que caga pluralidade e deixa os restos de sêmen no chão estavam morrendo da picada. Ou talvez do capitalismo. Tem madeira em forma de papel perto da porta e tinta que diz uma lista de autores para ler e regras da ABNT pra se seguir. Cortador de unha, clipe de papel, calculadora que meu avô me deu e um copo de vidro ou seria pote de maionese em que bebo a água da torneira. Café e açúcar, o açúcar mesmo que fez os ciclos assim como o café, a borracha, a água e o nitrogênio. Vieram de lugares distantes e de mãos sujas diferentes e vão para o cano de esgoto diferente e para o ratinho lectospirante diferente. E a palavra veio de papeis diversos que li e me esqueci, alguns eu lembro e cito baboseira de outros cagões. O tédio que me levou à caneta pode ter vindo da ferrugem dos dias ou da pobreza das relações sociais. As cinco mil substâncias tóxicas que recheavam meu bastão do câncer vieram de putas e máquinas aleatórias, não sei de onde e agora já acabaram pintando de um marrom-morte a carniça de meu pulmão. O gosto de sono veio dos campos de Morpheu e agora invadem minha noite que vem e volta todo dia até não precisar mais.

(Poeta Bastardo)



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Categoria: Prosa |
| Postado em: 12.03.13

Céu

Ontem enquanto masturbava-me pensando numa puta que quase engravidei uns meses atrás, lembrei de uma vez que uma menina me respondeu com uma piada boba. Perguntei, depois de procurar alguns minutos, com a mania de falar como quem escreve num bate-papo:

– Cadê meu “cel”?

– Tá aqui, amor – a menina me respondeu, sentada na minha cama, com um sorriso sincero e os braços abertos esperando um abraço.

Às vezes sem querer, enquanto procuro a merda do celular embaixo da cama ou entre tampas de panela que uso como cinzeiro e a lembrança do céu que eu mal percebia enquanto ainda havia bonança e a brisa fresca de nossas pizzas de sábado e os filmes sem noção do Lynch de madrugada, eu ainda posso ver as nuvens se abrindo quando a porta do ônibus se abre ou toca o celular e não o lençol gigante cheio de luzes mortas.

E eu posso dizer que punheta nenhuma sobreviveria a uma lembrança dessas. O abraço, que eu na hora dei cheio de um afeto apaixonado e sem escrúpulos, dias depois se tornou uma ausência que vez ou outra senta na minha cama, ouve a minha música, lê meus livros. E nessas horas não resta muita coisa a se fazer a não ser sentar com aquela ausência, oferecer um trago, balbuciar frases antigas, cantar algum trecho de uma música indie melosa e fingir que aquele vazio canta com você.

É… Nada pior do que quando a culpa mata uma foda. Mesmo que artificial.

(Poeta Bastardo)



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Categoria: Prosa |
| Postado em: 21.12.12